Infraestrutura, regulação e o equilíbrio entre inovação e direitos

Por Ricardo Campos, Natália Resende Andrade, Guilherme Theo Sampaio, Rafael Valim, Gustavo Saboia, Alexandre Freire, Allan Milagres, Flávia Takafashi e Alber Furtado de Vasconcelos Neto

Para o economista Reimut Jochimsen, infraestrutura material pode ser definida como “a totalidade de ativos remunerados, equipamentos e capital circulante em uma economia, que atende ao fornecimento de energia, serviço de transporte e telecomunicações”, adicionando, ainda, rotas de transporte em sentido lato, edifícios e instalações da administração pública, da educação, de pesquisa e de assistência social [1].

Apesar de enumerar importantes setores da infraestrutura, o autor não oferece uma definição precisa do termo. Os debates sobre sua conceituação são antigos e, na verdade, referem-se aos próprios objetivos de uma sociedade, isto é, ao que se pretende alcançar enquanto sociedade. Isso porque, em termos amplos, falar de infraestrutura é falar de sistemas complexos e cambiantes que dão sustentação às sociedades e economias modernas[2] — podendo, assim, variar de tempos em tempos.

Historicamente, o termo foi utilizado para diferenciar as construções que eram conduzidas embaixo dos trilhos, ou de forma anterior a eles (como pesquisas e túneis), em relação à superestrutura, ou seja, aos trabalhos conduzidos acima dos trilhos ou em momento posterior a eles (exemplo das estações de trem) [3]. Esse uso já demonstra um importante aspecto do termo, indicando que a infraestrutura está na base, isto é, serve para tornar outras coisas possíveis. Além disso, em seu sentido moderno — e de perspectiva econômica —, outras dimensões específicas também podem ser apontadas: a infraestrutura é caracterizada por ser indivisível, de longa duração, e por ser um bem público.

A provisão de infraestruturas é, ao mesmo tempo, um pressuposto do Estado e do mercado, uma vez que, sem ela, o primeiro não consegue exercer suas competências e o segundo é incapaz de produzir e fazer circular riqueza. Não se pode abrir mão, pois, dos esforços públicos e privados no desenvolvimento da infraestrutura, independentemente da ideologia prevalecente em determinado período histórico. Não é por acaso que o próprio Adam Smith, considerado o pai do liberalismo econômico, qualificava a infraestrutura — por ele chamada de “trabalhos públicos para facilitar o comércio em geral” — como uma atividade essencial do Estado, ao lado da defesa nacional e da prestação jurisdicional.

A função estrutural da infraestrutura (com o perdão da redundância) e a análise de seu papel na construção de distintos regimes jurídicos ao longo dos séculos revela uma importante característica do direito moderno: mais do que orientar ou moldar a configuração das atividades humanas (como aquelas relativas à infraestrutura), o direito de determinada época também é moldado pelas contingências presentes na sociedade. Para ilustrar essa questão, podemos pensar nas ferrovias nos Estados Unidos do século XIX e sua relevância para o surgimento de importantes marcos normativos no país.

Em seu livro intitulado Railroads and American Law (Ferrovias e o Direito Americano, em tradução livre), o professor James Ely Jr. argumenta que, em seu auge, a ferrovia foi a internet de sua época em seu impacto transformador na vida e no direito americano. Para ele, a ferrovia foi o promotor de um império econômico, assim como o ícone de uma revolução tecnológica que acelerou a expansão nacional e, no processo, transformou o sistema jurídico americano. Ely Jr. descreve como “o primeiro grande negócio americano” levou à criação de uma vasta gama de novas leis nos EUA, deixando muito poucos aspectos da sociedade americana intocados, alterando até mesmo a maneira como os americanos verificavam o tempo [4].

Embora possa parecer que a questão da regulação das ferrovias seja um assunto ultrapassado, há alguns aspectos concernentes à discussão sobre infraestrutura que merecem ser mencionados. Primeiro, a ferrovia foi a primeira grande indústria a experimentar uma regulamentação extensa, e trouxe inovações legais significativas que regem o comércio interestadual, domínio eminente, propriedade privada, relações trabalhistas e muito mais. Muito deste desenvolvimento foi originalmente projetado para servir aos interesses das próprias ferrovias, mas gradualmente veio a contestar e controlar o poder e as tendências de exploração da indústria. Em segundo lugar, apesar de sua importância, a regulamentação da ferrovia — seja por leis ou decisões judiciais — foi um processo fragmentado, levando algumas décadas para ser concluído. Terceiro, devido a todos os desafios regulatórios colocados pela ferrovia no século XIX, o Congresso americano promulgou, em 1887, a Lei de Comércio Interestadual, que criou a Comissão de Comércio Interestadual para o propósito específico de regular as ferrovias.

Podemos traçar alguns paralelos entre a regulamentação das ferrovias e a regulamentação de infraestruturas hoje. Primeiramente, assim como as ferrovias foram fundamentais para a formação da sociedade industrial ao longo do século XIX e início do século XX, outros tipos de infraestrutura se revelam essenciais para a sociedade contemporânea — estando, possivelmente, ainda mais imbricadas nos vários aspectos de formação econômica, cultural, política etc. Em segundo lugar, podemos observar na experiência da regulamentação das ferrovias a importância da referida comissão para regulamentar o assunto, uma vez que foi reconhecido que as formas “tradicionais” de fazer direito não seriam capazes de regulamentar adequadamente aquela nova tecnologia que estava surgindo na época.

O que havia nos EUA na década de 1880 era um amplo consenso de que controles estatais fragmentados e inconsistentes eram inadequados para lidar com as dificuldades e abusos percebidos decorrentes das operações interestaduais das ferrovias. No entanto, havia pouco consenso sobre a natureza do “problema ferroviário” e menos ainda sobre a melhor maneira de abordar a questão, de modo que “traduzir o desejo público amorfo de regulamentação ferroviária em legislação concreta não foi uma tarefa fácil” [5]. Sobretudo atualmente, em um contexto de transições tecnológicas [6], a empreitada de traduzir os desejos e necessidades dos diferentes stakeholders que conjuntamente constroem e usufruem das infraestruturas — empresas, governos, cidadãos — não é simples.

A relação cada vez mais complexa entre os atores apontados acima, decorrente das novas expectativas e novas (ou renovadas) atividades econômicas, implica repensar qual é o papel do direito em todo este processo. A dinâmica da nova sociedade requer um direito que não opere apenas como um pensamento posterior, como um sistema downstream. Antes, é preciso pensar em maneiras de regulação que levem em conta a característica de rede, interconectada, da sociedade atual. Não cabe apenas ao direito (ou ao Estado) ditar as regras do jogo, tampouco o mercado per se será capaz de endereçar todas as questões relativas à regulação das infraestruturas.

Impõe-se, nesse contexto, a superação de uma lógica binária e maniqueísta que prevalece há muito no Brasil, traduzida em uma contraposição daqueles que demonizam o Estado e julgam que o mercado é a fonte exclusiva do dinamismo econômico e da inovação e, de outro, aqueles que sacralizam o Estado e desprezam a importância do mercado. Ao Estado e ao mercado correspondem funções indispensáveis e complementares, as quais devem ser definidas de maneira técnica, objetiva, e não por modismos que ora postulam uma exagerada intervenção do Estado, ora um total absenteísmo.

Assim como ocorreu com a regulação das ferrovias nos Estados Unidos, precisamos realizar o esforço de pensar novas formas de se regular os diferentes tipos e aspectos da infraestrutura, buscando sempre o equilíbrio entre a inovação (econômica, social e cultural) e a salvaguarda dos direitos de todos os atores envolvidos.

Com a inauguração desta coluna, buscamos enfrentar esse extraordinário desafio. Com rigor técnico-jurídico e os olhos voltados ao futuro, analisaremos a regulação e provisão de infraestruturas enquanto meio indispensável à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, nos termos da nossa Constituição Federal.


[1] Jochimsen, R., Ed. (1966). Theorie der Infrastruktur: Grundlagen der marktwirtschaftlichen Entwicklung. Tübingen, J.C.B. Mohr. P. 103.

[2] Carse, Ashley. Keyword: Infrastructure. How a humble French engineering term shaped the modern world. In: ? P. 27.

[3] Carse, p. 29.

[4] ELY, James W. Railroads and American law. Lawrence, Kan: University Press of Kansas, 2002.

[5] ELY, James. The Troubled Beginning of the Interstate Commerce Act. Marquette Law Review, v. 95, n. 4, p. 1.131, 2012. Disponível em: <https://scholarship.law.marquette.edu/mulr/vol95/iss4/4>.

[6] “As Transições Tecnológicas (TT) são definidas como grandes transformações tecnológicas na forma como as funções sociais, como transporte, comunicação, moradia, alimentação, são cumpridas. As TT não envolvem apenas mudanças tecnológicas, mas também mudanças em elementos como práticas de usuário, regulamentação, redes industriais, infraestrutura e significado simbólico. Um exemplo é a transição nos escritórios da tecnologia de cartões perfurados e da tecnologia de pequenos escritórios para os computadores digitais.” (GEELS, Frank W. Technological transitions as evolutionary reconfiguration processes: a multi-level perspective and a case-study. Research Policy, v. 31, n. 8–9, p. 1257–1274, 2002. Disponível em: <https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0048733302000628>. Acesso em: 10 nov. 2022.)

Sobre o autor
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Ricardo Campos

Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Consultor jurídico e parecerista
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Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Consultor jurídico e parecerista

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