Por Alexandre Gonçalves Kassama e Sílvio Tadeu de Campos, pesquisadores do Legal Grounds Institute.
Originalmente publicado no Consultor Jurídico (Conjur), em 23 de maio de 2023, 8h00
Desde o seminal paper do lendário Satoshi Nakamoto [1], em outubro de 2008, a evolução de métodos criptográficos com base em redes blockchain tem se desenvolvido em velocidade acelerada, sempre com um aparente norte de desintermediar as relações econômicas por meio de tecnologia. Nas palavras de seu fundador: “What is needed is an electronic payment system based on cryptographic proof instead of trust, allowing any two willing parties to transact directly with each other without the need for a trusted third party” [2].
A partir da ideia inicial de transferência de valores entre duas partes individualizadas por meio de códigos eletrônicos criptografados e certificados de forma distribuída em toda rede [3], os mecanismos de desintermediação, e consequente substituição de um terceiro confiável pelo código consentido, se multiplicaram exponencialmente, sendo especialmente relevantes os chamados “smart contracts” e, a partir deles, as “decentralized autonomous organizations” (DAOs), os quais, em conjunto, endereçaram problemas específicos que eram — e são — solucionados na economia tradicional por meio de instituições como bancos, agentes fiduciários, centrais de custódias etc.
Os “smart contracts”, apesar do nome, não são exatamente contratos, mas, antes, mecanismos de autoexecutoriedade de disposições contratuais que permitem, por exemplo, a verificação de condições (estas sim contratuais) previamente estipuladas de forma autônoma, substituindo, e.g., escrow accounts, por códigos de programação específicos previamente preparados para a verificação da conclusão das operações de cada parte de forma automatizada [4].
Em síntese, para aludir a um problema comum da economia bastante “tradicional”, pelos smart contracts seria possível acabar com o dilema tão presente no dia a dia dos tabelionatos de notas em que a parte vendedora do imóvel só deseja assinar a escritura após a disponibilidade dos valores em sua conta, ao passo que a parte compradora só deseja transferir o dinheiro após a assinatura da escritura [5]. O próprio protocolo automatizado faria a transferência de valores somente após a verificação da efetiva venda e sem necessidade de nova autorização por parte do comprador, garantindo a ambas as partes a concretização da prestação da contraparte.
A partir de tal segunda evolução dos métodos da economia digital, por sua vez, foi possível estruturar as mais diversas formas de utilização de redes de protocolo automatizado, sendo especialmente interessantes para os propósitos de desintermediação as chamadas DAOs (decentralized autonomous organizations), pelas quais as regras de governança de uma dada organização seriam registradas em blockchain com autoexecutoriedade conferida pelos smart contracts, permitindo, assim, uma decisão colegiada sem necessidade de supervisão e concretização autônoma. “Code is law”, como queria Lessig [6].
Juntos, os smart contracts e as DAOs impulsionaram todo um ecossistema de transações econômicas naquilo que se convencionou chamar de “finanças descentralizadas”, ou, simplesmente, “DeFi”, termo em inglês que define o conjunto de serviços e produtos financeiros operados em geral numa blockchain, sem que haja um controle por intermediários, como bancos e outras instituições financeiras.
Por essa automatização das operações, os empréstimos, por exemplo, apresentariam, idealmente, custos reduzidos frente ao mercado tradicional, liberando-se justamente a parte cabível ao intermediário, sendo, ademais, as taxas e regras definidas com maior clareza do que nas operações dos bancos centralizados, deixando menor margem para erros cometidos por humanos e seus vieses cognitivos e conflitos de interesses.
Além da possibilidade de empréstimos, o sistema permite outros negócios financeiros sem a necessidade de um intermediador, assim: stablecoins, yield farming, decentralized exchanges, tokenização de ativos e outros projetos mais populares.
Frente ao avanço das tecnologias digitais, também a regulação e os problemas que ela visa combater no mundo “analógico” tomam outras formas.
Seria utópico entender que o ecossistema digital poderia operar completamente de forma autônoma, independente das instituições políticas “do mundo real”, como um universo anarquista paralelo de aficionados em que toda a lei se resumiria a um código e ao cuidado e respeito individual de cada um para com seu próprio patrimônio [7]. Mesmo redes hoje consagradas como o ethereum carregam em sua história ataques criminosos contabilizando milhões em prejuízo, e a bifurcação do desenvolvimento em um “reset” da rede originária gerando duas moedas, uma em continuidade à regra anterior defraudada, e uma nova em que os efeitos do crime foram apagados como se a rede jamais tivesse sido atacada, trariam pouco alento em uma sociedade “tradicional” ainda preocupada com valores como justiça e responsabilização.
Outras questões de regulação sistêmica também se colocam para outras áreas da sociedade para além do Direito. A mera possibilidade de empréstimos P2P — “peer-to-peer” — não se faz, por si, grande novidade, sendo praticado, por exemplo, por meio de fomento de notários franceses desde o século 19, pelo menos [8]. Contudo, o desenvolvimento da tecnologia tokenizada, inclusive pelo próprio Estado, pode pôr em risco o sistema financeiro que conhecemos hoje como um todo, a depender da conformação e uso que se dê aos novos desenvolvimentos [9].
De fato, à medida que a tecnologia se espalha e populariza, as interações entre o mundo digital e o “analógico” passam a se tornar também centrais para a canalização das comunicações de toda a sociedade, abrangendo um grande espectro que varia desde o Direito e a economia, até a política e a grande mídia, tomando uma enorme carga de atenção social que até então podia se ver ao menos parcialmente indiferente ao tema [10].
É justamente para que não se veja surpreendida por um ecossistema já formado e codificado, sem que decisões centrais ao formato da arquitetura de tal rede sejam expostas ao debate e escrutínio público, que se coloca a necessidade de intensa discussão sobre as formas de regulação e criação de uma infraestrutura jurídica adequada para o desenvolvimento consentâneo da tecnologia em relação a valores fundamentais de nossa sociedade, que passam desde imperativos de justiça até a estabilização da moeda e do sistema financeiro [11].
Nessa toada, em um design semelhante ao que anteriormente era remetido à crise derivada das fricções causadas por problemas globais e seus resultados e possibilidades de contenção meramente locais [12], será natural que a análise e ação inicial para tratar das dificuldades da nova economia digital se volte aos já testados e conhecidos mecanismos do mundo “analógico” [13], com as inevitáveis inadequações e aporias daí derivadas.
No entanto, por outro lado, a forma normativa não deixará de existir por não ser derivada diretamente do Estado, e mesmo uma preponderância de expectativas cognitivas — como as derivadas dos códigos de programação — não excluirão mecanismos de formação institucionalizada de consenso na comunidade [14], não podendo, em última análise, o Estado abdicar de seu papel como indutor e controlador, em última instância, das políticas públicas essenciais, caso se queira que a novidade ganhe escala e penetração [15].
Sobre o desenvolvimento regulatório, pode-se vislumbrar papel essencial de pelo menos três métodos diversos a servirem de guia nos passos futuros.
Em primeiro lugar, a experiência internacional e comparada será essencial, como em todo tema novo, para se espelhar, no que compatível, a regulação local. Entre essas é interessante observar iniciativas como estudo elaborado em 2022 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) [16] com sugestões e preocupações que demonstram que os efeitos das novas tecnologias atingirão todos os países, estejam eles mais ou menos preparados para estes impactos.
Outra experiência apta a fomentar a tecnologia sem que haja riscos de efeitos sistêmicos, quer de uma regulação por demais restritiva, quer de uma por demais permissiva, são aberturas localizadas a novas experiências, como as “sandbox” já incentivadas pelo regulador na figura da CVM [17].
Por fim, e talvez mais essencial, será destacado aqui o papel central que, entre teoria, dogmática e prática, caberá aos estudiosos, na formação de uma verdadeira doutrina — talvez não somente formada por profissionais do âmbito jurídico — a guiar um desenvolvimento coerente e seguro, na medida das instabilidades e incertezas que o próprio campo evoca.
[1] NAKAMOTO, S. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic cash system. Disponível em https://bitcoin.org/bitcoin.pdf Acesso em 24.04.2023.
[2] Idem, ibidem. p. 1.
[3] “We define an electronic coin as a chain of digital signatures. Each owner transfers the coin to the next by digitally signing a hash of the previous transaction and the public key of the next owner and adding these to the end of the coin. A payee can verify the signatures to verify the chain of ownership.” Idem, ibidem. p. 2.
[4] Sobre o tema, v. MORAES, B. B. Q. de; MELLO, G. M. de S. Smart legal Contracts carregam consigo incontáveis benefícios. 29 de outubro de 2018. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-out-29/smart-legal-contracts-contratos. Acesso em 24.04.2023
[5] Em grande parte dos países que seguem o modelo do notariado latino este problema é resolvido pelo depósito do valor na conta do notário (assim, por exemplo, Espanha, Itália, entre outros), o qual acaba por fazer às vezes justamente da escrow account.
[6] “Every age has its potential regulator, its threat to liberty. (…) Ours is the age of cyberspace. It, too, has a regulator. This regulator, too, threatens liberty. But so obsessed are we with the idea that liberty means “freedom from government” that we don’t even see the regulation in this new space. We therefore don’t see the threat to liberty that this regulation presents. This regulator is code–the software and hardware that make cyberspace as it is. This code, or architecture, sets the terms on which life in cyberspace is experienced.” LESSIG, L. Code is law. Disponível em https://www.harvardmagazine.com/2000/01/code-is-law-html. Acesso em 24.04.2023.
[7] Algo que é bem resumido na célebre frase de Andreas Antonopoulos “not your Keys, not your coins”.
[8] V. HOFFMAN, P.T; POSTEL-VINAY, G.; ROSENTTHAL, J-L. Entry, information, and financial development: A century of competition between French banks and notaries. Explorations in Economic History, Volume 55, January 2015, Pages 39-57. Disponível em https://authors.library.caltech.edu/56721/. Acesso em 25.04.2023.
[9] V. SALAMA, B. M; ZELMANOVITZ, L. Crítica à proposta de criação de ‘Real Digital’ de ‘varejo’. 2023. Disponível em https://works.bepress.com/bruno_meyerhof_salama/174/. Acesso em 25.04.2023.
[10] “Não compramos pão com Bitcoins e as operações de crédito que alimentam o setor produtivo não são feitas com criptomoedas, em geral (pelo menos a parte que opera legalmente e podemos observar). (…) Mas se um dia a criptomoeda for importante para a economia real e uma grande instituição quebrar, o objetivo central das autoridades será evitar corridas e contágio. Se preciso, dinheiro público será usado. Na hora da crise, vem a intervenção que aguente a paulada, e não adianta a gente bater o pé no chão. Não adianta o governo prometer que não intervirá na quebra de instituições financeiras. Nunca adiantou no mundo das finanças tradicionais, não adiantaria num mundo de criptomoedas, assim como não adianta ameaçar nossos filhos com castigos que não executaremos.” GUIMARÃES, B. Criptomoedas e a miragem das finanças descentralizadas. 14.03.2023. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-guimaraes/2023/03/criptomoedas-e-a-miragem-das-financas-descentralizadas.shtml. Acesso em 25.04.2023.
[11] Sobre a regulação como parte tão importante quanto a infraestrutura “física” necessária para o desenvolvimento, v. CAMPOS, R; ANDRADE, N. R.; SAMPAIO, G. T.; VALIM, R.; SABOIA, G.; FREIRE, A.; MILAGRES, A.; TAKAFASHI, F.; VASCONCELOS NETO, A. F. DE. Infraestrutura, regulação e o equilíbrio entre inovação e direitos. 21.12.2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-21/infraestrutura-debate-infraestrutura-regulacao-inovacao. Acesso em 25.04.2023.
[12] BAUMAN, Z. Legisladores e intérpretes. Sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Tradução de Renato Aguiar. São Paulo: Zahar, 2010
[13] Sobre as referidas dificuldades de regulação do novo com olhares ainda pautados pelo velho, v. COSTA, I. Staking é security? Esfirra com orégano é minipizza? 14.02.2023. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-abr-19/fintech-crypto-usar-inovacao-desenvolver-mercado-capitais. Acesso em 25.04.2023.
[14] V. CAMPOS, R. Metamorfoses do Direito Global: sobre a interação entre Direito, tempo e tecnologia. São Paulo: Contracorrente, 2022.
[15] Para diversos aspectos da regulação e seus desdobramentos no setor, v. DA COSTA, I. S.; PRADO, V. M.; GRUPENMACHER, G. T. (Orgs.) Criptolaw: Inovação, direito e desenvolvimento. São Paulo: Almedina, 2020.
[16] OCDE. Why Decentralised Finance (DeFi) Mattes and the Policy Implications, OECD Paris, 2022.
[17] V. ARARIPE, J. de A.; ZELMANOVITS, N. Finanças descentralizadas (DeFi): desafios regulatórios e recomendações da OCDE. 06.08.2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-ago-06/zelmanovitse-araripe-desafios-regulatorios-recomendacao-ocde. Acesso em 25.04.2023.