O direito de arrependimento em videogames

Por Bernardo Fico, do Legal Grounds, e Bruno Blum Fonseca.

Publicado originalmente no Portal Jota, em 25/06/2023 05:30

O direito de arrependimento é garantido pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), lei aprovada antes da ascensão da internet. Por isso, surgem dúvidas sobre a aplicação do já clássico direito de arrependimento em casos disruptivos, por exemplo, envolvendo a compra de produtos digitais. Se inexistia a internet em 1990, é claro que os produtos digitais eram imprevisíveis para os autores do CDC, o que pode afetar a aplicação desse direito no mundo dos videogames.

Em seu art. 49, o CDC define o direito de arrependimento e garante ao consumidor a possibilidade de desistir de um produto ou serviço contratado fora do estabelecimento comercial, dentro de um prazo de sete dias. O arrependimento é um direito do consumidor: para exercê-lo, basta que a pessoa indique seu arrependimento, desfazendo-se o contrato e devendo-se devolver os valores pagos; não é preciso qualquer justificativa. O “arrependimento” surge do reconhecimento de que a vontade do consumidor não foi manifestada de maneira absolutamente consciente ou certa, ou mesmo quando o consumidor adquire um produto e apenas no recebimento da mercadoria percebe que esta não atende a suas expectativas.[1]

Partindo-se de uma leitura literal do CDC, o simples fato de as compras feitas por meio de um videogame ocorrerem “fora do estabelecimento comercial” já justificaria a aplicação do direito de arrependimento. Entendendo a complexidade dessa questão, algumas plataformas de jogos passaram a prever, em suas próprias políticas, casos nos quais clientes podem pedir reembolso (“arrependimento”) de suas compras. Para todas as plataformas, uma vez computado o pedido de reembolso, o usuário perde imediatamente o acesso aos itens e/ou jogos reembolsados.

A Xbox permite o reembolso de jogos comprados por meios digitais desde que solicitados em até 14 dias da compra e o jogador não acumule uma “quantidade significativa de tempo de jogo”. A aplicabilidade da política engloba uma série de produtos Xbox, e pode ser acionada para conteúdos duráveis ou consumíveis por meio de Xbox, computador ou dispositivo móvel. Os itens de uso único (consumíveis e moedas in game), contudo, usualmente serão reembolsados apenas em caso de erro.[2]

A PlayStation adota regras similares, especificando casos nos quais os pedidos de reembolso e cancelamento poderão ser atendidos ou não. Adotando os mesmos 14 dias de prazo para a solicitação, a PlayStation explicitamente permite que itens de uso único (consumíveis e moedas in game) comprados via PlayStation Store sejam cancelados desde que o jogo para o qual se destinam não tenha sido iniciado após a compra. Quaisquer compras de consumíveis que sejam efetivamente recebidas, ou adquiridas diretamente durante a partida, geralmente não serão ressarcidas.[3]

A Eletronic Arts (EA Games) também adota o padrão de 14 dias para o arrependimento, mas prevê uma janela de 24 horas para um jogador notificar sua desistência após iniciar o jogo pela primeira vez após a compra. O prazo de reclamação é expandido apenas em casos nos quais a EA Games seja responsável por problemas técnicos ocorridos no jogo.[4]

A Nintendo, contudo, não garante em suas políticas a previsão de reembolso, determinando que nenhuma compra on-line será reembolsada, exceto conforme “exigência nos termos das leis aplicáveis”.[5] Trocas e devoluções de produto adquiridos diretamente pela loja My Nintendo são permitidas conforme os termos da empresa, que explicitamente proíbe o reembolso de itens digitais (incluindo jogos digitais, itens digitais e outros).[6]

Nesse contexto, deve-se questionar se existe, no Brasil, uma exigência legal para a possibilidade de devolução de compras de jogos (ou itens de jogos) online. Conforme a doutrina e a jurisprudência, o direito de arrependimento – que justifica a possibilidade de devolução de produtos comprados on-line – possui dois fundamentos independentes: o déficit informacional e o déficit de reflexão. Basta que um destes exista para que o direito de arrependimento seja aplicável. Ao longo dos anos, a doutrina foi definindo o significado dos dois critérios, mas, ainda assim, sua aplicação no mundo digital, inclusive nos videogames, pode ser complexa.

Para os videogames, o déficit informacional ocorre com menor frequência, visto que muitos jogos permitem acessar uma prévia do item a ser comprado. Por exemplo, há jogos que, já de início, disponibilizam uma quantia de sua moeda virtual ou permitem partidas demonstrativas (“demos”). Nesse caso, desde o início, todos têm acesso à moeda virtual (ou a parte do jogo) e seu funcionamento. Assim, é mais difícil mostrar um déficit informacional nas compras posteriores.

Por vezes, os itens in game podem ser previamente testados, normalmente em um ambiente controlado. A prática é parecida com o que, no mundo físico, são os provadores da loja de roupas; a possibilidade de “provar” um produto digital antes de adquiri-lo efetivamente pode significar que o direito de arrependimento deixe de existir. Assim, os videogames têm a possibilidade de – mediante uma boa arquitetura de seu sistema de vendas – reduzir muito os seus riscos. Por isso, seguir estratégias que permitam ao jogador conhecer efetivamente os produtos digitais que quer adquirir cria maior segurança nas compras para a própria plataforma, além de garantir maior satisfação dos jogadores.

Contudo, ainda há que se pensar em um eventual déficit de reflexão nas compras envolvendo videogames. No mundo dos games on-line, por exemplo, é recorrente que determinados itens sejam ofertados em tempo ou quantidade limitados. Assim, o jogador é instigado a adquirir os bens rapidamente, sem maior reflexão. Nesses casos, seria razoável afirmar que elementos externos prejudicam a reflexão do indivíduo? Se sim, essa pressão externa pode causar um déficit capaz de justificar o direito de arrependimento?

Outro fator potencialmente agravante é o fato de que alguns jogos usam mecanismos análogos aos de jogos de azar. No caso das loot boxes (“caixas de recompensa”), por exemplo, o jogador é instigado a seguir adquirindo produtos digitais, de forma a tentar a sorte para ganhar melhores itens. Sem entrar no mérito da legalidade dessa prática, é necessário alertar contra uma possível impulsividade nos jogadores, que poderia justificar o direito de os consumidores se arrependerem das compras realizadas por impulso.

Além disso, não é raro que o próprio jogo/aplicativo pressione o jogador. Algumas empresas se valem de pushs, landing pages, in-mail, pop-ups e outros recursos de notificação para constantemente instigar os usuários a comprar novos itens e aproveitar a mais recente promoção. O uso constante dessa comunicação assemelha-se à figura do “vendedor insistente”, que perturba repetidamente o comprador até que o convença, por cansaço, a adquirir o produto. A inexistência de uma pessoa física realizando pressão não deve descaracterizar a prática abusiva.

Por fim, não se pode esquecer que, para muitos videogames, parte do público é composta de crianças e adolescentes. Assim, há que se tomar cuidado redobrado para que estratégias lícitas de propaganda e interação com jogadores não acabem por inadvertidamente aproveitar-se do déficit de julgamento e experiência dos mais jovens. Nesses casos, convém uma análise das práticas empresariais à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Por isso, deve-se reconhecer que há a possibilidade de se aplicar o direito de arrependimento nas compras ocorridas em videogames, mesmo para os casos em que a política de compras da empresa não permita explicitamente o arrependimento. Sendo aplicável o direito de arrependimento, cabe ao mercado de games buscar a implementação de medidas mitigadoras. Particularmente, sugere-se voltar esforços a sanar o déficit mais recorrente nesse mercado, o de reflexão, observando os fatores que influenciam a decisão dos jogadores. Deve-se analisar para cada caso se há elementos que perturbam, ainda que involuntariamente, a reflexão do consumidor em seu processo de compra.

[1] Consumer’s right to cancellation: hermeneutical challenge and hard cases. Revista de Direito do Consumidor, v. 105, 2016, p. 203-235, maio-jun. 2016, DTR\2016\20383, p. 4.

[2] https://support.xbox.com/pt-BR/help/subscriptions-billing/buy-games-apps/refund-orders

[3] https://www.playstation.com/pt-br/legal/playstation-store-cancellation-policy/

[4] https://www.ea.com/pt-br/legal/great-game-guarantee-terms

[5] https://www.nintendo.com/pt-br/purchase-terms/

[6] https://www.nintendo.com/pt-br/returns-exchanges/?hideNavFooter=true

Sobre o autor
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Bernardo Fico

Gestor Institucional do Legal Grounds Institute. Mestre em Direito Internacional pela Northwestern Pritzker School of Law, Pós-Graduado em Direito Digital pela UERJ e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Possui cursos de concentração em Direitos Humanos (Stanford 2016), Direito Internacional (OEA-RJ, 2017), Human Rights Advocacy (Lucerne 2017), e Media Law (Oxford, 2018) além de Diploma Superior en Diversidad Sexual y Derechos Humanos (CLACSO, 2018).
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Bernardo Fico

Gestor Institucional do Legal Grounds Institute. Mestre em Direito Internacional pela Northwestern Pritzker School of Law, Pós-Graduado em Direito Digital pela UERJ e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Possui cursos de concentração em Direitos Humanos (Stanford 2016), Direito Internacional (OEA-RJ, 2017), Human Rights Advocacy (Lucerne 2017), e Media Law (Oxford, 2018) além de Diploma Superior en Diversidad Sexual y Derechos Humanos (CLACSO, 2018).

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