Por Ricardo Campos e Ministro João João Otávio de Noronha
Publicado originalmente na Coluna Reforma do Código Civil no Migalhas
Nas últimas décadas, a tecnologia alterou profundamente as relações sociais, sendo inevitável que os seus impactos repercutissem também nos atos e negócios jurídicos. A comissão de juristas responsável pela reforma do Código Civil, atenta a esse fenômeno, não apenas incluiu previsões que tangenciam a temática nos dispositivos sugeridos, como também previu um livro autônomo para o Direito Digital, com o intuito de harmonizar o ordenamento jurídico e abarcar os desafios e as peculiares do ambiente digital. Decorridas múltiplas reuniões e consultas, foi divulgado o relatório final, contemplando as contribuições que foram aprovadas.1
No livro dedicado ao Direito Digital foram introduzidas previsões sobre assinatura eletrônica, ante a migração das relações contratuais para o meio digital. A assinatura manuscrita, meio consolidado e amplamente utilizado para atestar a ciência e o consentimento de uma parte em relação ao teor de um documento2, coexiste com outra modalidade que vem ganhando crescente relevância, a assinatura eletrônica. As categorias existentes possuem grau progressivo de confiabilidade com relação a autoria, a integridade e a autenticidade, que se iniciam com a assinatura eletrônica simples, perpassam pela assinatura eletrônica avançada até atingir o seu maior nível com a assinatura eletrônica qualificada.
Na Europa, em 1999, foi elaborada a primeira regulamentação comunitária sobre o tema, a diretiva 1999/93/CE, oportunidade em que foram apresentados os elementos mínimos para a confiabilidade das assinaturas eletrônicas. A existência de instrumentos que permitissem o controle exclusivo do signatário e a verificação de eventuais alterações do seus dados foram atreladas à modalidade de assinatura eletrônica avançada, ao passo que o uso de certificado eletrônico qualificado emitido por prestador de servidor creditado, que assegurasse o nexo entre os dados de verificação da assinatura e a identicidade inequívoca ao signatário, foi associada à assinatura eletrônica qualificada. O cenário legal foi aperfeiçoado em 2014, com a edição do regulamento 910/14/CE (regulamento eIDAS), que, entre outros, determinou a existência de autoridade supervisora em cada Estado-Membro para regular o assunto naquela circunscrição e fixou a equivalência entre a assinatura eletrônica qualificada e a assinatura manuscrita.3
O Brasil legislou pela primeira vez sobre a matéria com a edição da MP 2.200-2, de 24/8/01, que instituiu a ICP-Brasil – Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, a qual serve como fundamento para o funcionamento do sistema nacional de assinaturas eletrônicas. Complementarmente, a lei 14.063/20 definiu as modalidades de assinaturas eletrônicas, fazendo referência expressa às três espécies4, o que não existia até então, além de estabelecer suas aplicações em interações com entidades públicas e em determinados atos realizados por pessoas jurídicas.
Ante a ausência de dispositivos sobre assinatura eletrônica no Código Civil, o grupo de Direito Digital apresentou sugestões, em capítulo dedicado, no qual foram incorporadas as definições conceituais contidas no art. 4º, I a III da lei 14.063/20, bem como a presunção de veracidade ali fixada em prol das declarações que utilizam o sistema de certificação da ICP-Brasil, empregado nas assinaturas eletrônicas qualificadas.
Previsão relevante estabelece que, salvo disposição legal em sentido contrário, a validade de documentos constitutivos, modificativos ou extintivos de posições jurídicas que produzam efeitos perante terceiros depende de assinatura qualificada. O intuito foi assegurar que a espécie de assinatura eletrônica considerada mais segura, em termos de certeza quanto à identidade do signatário e integridade do conteúdo, e traz em si a possibilidade de checagem para fins probatórios, a modalidade qualificada, fosse utilizada em atos jurídicos que possam afetar terceiros. A seara dos direitos reais é permeada de exemplos nesse sentido, como as operações de venda e compra de imóveis e de constituição de usufruto, que devem ser registradas no registro público para eficácia plena da publicidade registral. Atos afetos a outros ramos do Direito, como a instituição de legados ou a realização de doações de bens da parte disponível da herança também podem exigir o uso de assinatura eletrônica qualificada. Ponto distintivo adicional da proposta da Comissão é a previsão de que a assinatura eletrônica não serve como meio de comprovação da capacidade do signatário ou da inexistência de vícios na manifestação de vontade. A eficiência do método de assinatura eletrônica empregado não se confunde com a comprovação da capacidade do signatário em compreender o ato jurídico praticado e suas implicações.
A integração da tecnologia no Direito, refletida na reforma do Código Civil e na criação do livro autônomo para o direito digital, marca um avanço significativo na adaptação do ordenamento jurídico às novas realidades digitais. A inclusão das modalidades de assinatura eletrônica no sistema jurídico brasileiro, com ênfase na assinatura eletrônica qualificada, demonstra um esforço deliberado para garantir segurança e confiabilidade nos atos jurídicos em um ambiente digital cada vez mais presente. A reforma, portanto, não apenas harmoniza o direito com as novas tecnologias, mas também estabelece limites claros para assegurar a integridade dos atos jurídicos. Dessa forma, o Código Civil atualizado oferece uma base sólida para lidar com os desafios do ambiente digital, promovendo uma maior segurança jurídica e adaptabilidade em um cenário de constantes inovações tecnológicas.
1 Disponível aqui.
2 Para Béatrice Fraenkel, antropóloga especializada em antropologia da escrita, a assinatura surgiu como um símbolo da identidade moderna que se estabelecia, incorporando o eu individua, a capacidade de emitir juízos morais, de agir conforme a legislação e de consentir e estabelecer relações sociais. Com o crescimento da alfabetização, a disseminação das normas escritas e a criação de governos mais burocráticos, a assinatura tornou-se um instrumento de validação capaz de converter um documento escrito em um ato jurídico. FRAENKEL, B. La signature, gene`se d’un signe. Paris: Gallimard, 1992.
3 Na Alemanha apenas as assinaturas eletrônicas qualificadas, conforme definido no Art. 3(12) do Regulamento eIDAS, atendem aos requisitos de forma eletrônica estabelecidos pelo § 126-A do Código Civil Alemão (BGB), podendo substituir a forma escrita legalmente exigida. Apenas documentos eletrônicos assinados com assinatura eletrônica qualificada possuem o mesmo valor probatório que os documentos em papel, de acordo com o Código de Processo Civil (seção 371-A (1) ZPO).
4 Art. 4º Para efeitos desta Lei, as assinaturas eletrônicas são classificadas em:
I – assinatura eletrônica simples:
a) a que permite identificar o seu signatário;
b) a que anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário;
II – assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características:
a) está associada ao signatário de maneira unívoca;
b) utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo;
c) está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável;
III – assinatura eletrônica qualificada: a que utiliza certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001.
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