A evolução da governança da Internet: da governança liberal às governanças plurais

Por Henrique Martins e Mateus Andrade

Publicado orginalmente na Revista Consultor Jurídico (Conjur)

A internet se originou como uma iniciativa governamental norte-americana, no final da década de 1960, a partir do desenvolvimento da Defense Advanced Research Project Agency Network (Darpanet). Em meados da década de 1970, evoluiu-se, a partir da introdução do TCP/IP, para o que hoje é conhecido como internet. A internet, apontada como a primeira invenção criada pelo homem que é verdadeiramente transnacional [1], tem por uma de suas características a sua natureza distribuída, evitando barreiras tradicionais e mecanismos de controle [2].

A legitimidade para governar a internet não está vinculada a uma única jurisdição, não é derivada de nenhuma organização internacional estabelecida ou concedida a uma entidade específica [1]. A “governança da internet” é um conceito complexo e que representa a articulação entre vários órgãos com legitimidades e graus de hierarquia, geralmente, pouco claros. Todas as redes de computadores, por questão de governança, requerem algum nível de administração, mas não sem a existência de consideráveis disputas políticas no seu contexto [3].

Em 1994, a US National Science Foundation, que administrou a estrutura-chave da internet, decidiu terceirizar a administração do sistema de nomes de domínio (do inglês: Domain Name System – DNS) a uma empresa privada norte-americana denominada Network Solutions Inc. (NSI). Em decorrência da repercussão negativa desta ação junto à comunidade de usuários da internet, o que gerou a chamada “guerra do DNS”, introduziram-se novos atores neste cenário: organizações internacionais e Estados nacionais [2], culminando no estabelecimento da Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN) em 1998 [4].

Kurbalija (2016) e Almeida, Doneda e Monteiro (2015), ao retomarem a conceituação proposta no contexto da World Summit on the Information Society — WSIS (2005), caracterizaram a “governança da internet“ como sendo o desenvolvimento e a aplicação pelos governos, pelo setor privado e pela sociedade civil de princípios, normas, regras, procedimentos de tomada de decisão e programas compartilhados que moldam a evolução e o uso da Internet.

O termo “governança da internet” existe desde meados da década de 1990 — com indicação de seu uso acadêmico nos EUA por volta de 1996. Desde que o termo foi cunhado, seu significado se ampliou consideravelmente pois, inicialmente, era centrado na cooperação da internet para atribuição de Nomes e Números (ICANN) e em suas respectivas políticas. Com o advento da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS) e a criação do Fórum de Governança da Internet (do inglês: Internet Governance Forum — IGF), o campo de estudo em “governança da internet“ se tornou muito mais diversificado [6].

Atores da governança da internet
Epstein, Katzenbach e Musiani (2016) e Almeida, Doneda e Monteiro (2015) apontam como principais integrantes da parte institucional da governança da internet a ICANN, a WSIS e o IGF.

A Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN)
A ICANN é uma organização sediada nos Estados Unidos e criada como reguladora do setor do Sistema de Nomes de Domínio (DNS). O DNS, por vezes chamado de “catálogo de endereços da Internet”, tem por sua principal função traduzir os endereços IP para uma forma mais significativa do ponto de vista de um usuário da Internet. Não é necessário que o usuário saiba o endereço e o local exatos do dispositivo que contém o conteúdo desejável, o provedor do conteúdo deseja que seu conteúdo seja acessível da forma mais fácil possível. É por isso que o provedor visa obter um endereço facilmente memorizável para se constituir nome de domínio. Como o nome completo da ICANN sugere, ela desempenha um papel fundamental na alocação de nomes de domínio [8].

Conforme define o artigo 1, seção 1.1 (a) do seu estatuto, a missão da ICANN é “garantir a operação estável e segura dos sistemas de identificadores exclusivos da Internet” [9], tendo como valores fundamentais, conforme seção 1.2 (b) do mesmo artigo, a busca e apoio a uma:

[…] participação ampla e informada que reflita a diversidade funcional, geográfica e cultural da Internet em todos os níveis de desenvolvimento de políticas e tomada de decisões, para garantir que o processo de desenvolvimento de políticas de baixo para cima e com múltiplas partes interessadas seja usado para determinar o interesse público global e que esses processos sejam responsáveis e transparentes (ICANN, 2025).

Por isso, a ICANN é considerada uma das principais organizações mundiais que governam a Internet. Enquanto uma corporação de benefício público sem fins lucrativos, vem afirmando estar disposta a ser um espaço de deliberação pública, permitindo ampla participação de quem assim desejar [8]. Criada em 1998, apesar de se constituir em uma das principais organizações do mundo que regem a Internet, reiteradamente enfrentou críticas sobre a sua falta de legitimidade por parte de demais países, principalmente, devido ao seu relacionamento estreito e contínuo com o governo dos EUA [1].

Quando a ICANN foi formada, procurou usufruir da mesma fonte de legitimidade que a IETF[1] possuía em época, sendo um modelo exemplar de uma organização autônoma de múltiplas partes interessadas [1]. Com a fundação da ICANN, houve uma mudança na pesquisa sobre governança da Internet para aspectos institucionais, incluindo os processos políticos e as constelações de atores desse novo órgão. No final dos anos 1990, rejeitou-se a regulamentação pública de comando e controle da governança da Internet e se favoreceu de uma autorregulamentação baseada no mercado. Esperava-se, assim, que a governança da Internet evoluísse como uma criação de regras descentralizadas de baixo para cima, a chamada produção de governança por pares [6].

Em 2009, o Departamento de Comércio dos EUA emitiu a Afirmação de Compromissos com o objetivo de sair da função de supervisor da ICANN, possibilitando assim que ela se tornasse mais autônoma. De outro lado, o Brasil tem sido um dos países mais ativos na política digital global, mas em termos concretos, não obteve êxito em alcançar uma linguagem mais sólida na Declaração Multissetorial da NETmundial com relação à neutralidade da rede e à vigilância em massa, duas áreas prioritárias para a diplomacia da Internet no país.

Cúpula mundial sobre a sociedade da informação — WSIS
O WSIS proporcionou uma plataforma para que os governos dos países em desenvolvimento e a União Europeia desafiassem a preeminência dos EUA na governança da Internet. A cúpula mobilizou uma ampla gama de redes de defesa da sociedade civil em torno de questões de política de comunicação e informação, porém, poucos ou nenhum dos conflitos políticos internacionais que levaram à WSIS foram resolvidos, o que levou os governos do mundo a criar o IGF das Nações Unidas [4].

Fórum de Governança da Internet — IGF
O Fórum de Governança da Internet é um encontro anual promovido sob a coordenação da Organização das Nações Unidas (ONU) para promover o diálogo entre múltiplos setores sobre políticas públicas relacionadas à gestão da Internet. A criação do IGF foi uma das sugestões originadas durante a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS), um conjunto de conferências organizadas pela ONU em Genebra, em 2003, e em Túnis, em 2005, com o objetivo de debater o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) como ferramentas para o progresso social, econômico e cultural, especialmente visando reduzir o desnível digital existente entre diferentes nações e entre comunidades ou regiões de um mesmo território [10].

Atualmente, o IGF é amplamente reconhecido como o principal ambiente de debate global sobre governança da internet. Com exceção da edição inaugural realizada em Atenas, em 2006, que contou com apenas 36 workshops apresentados, o IGF se consolidou com um número de participantes que têm variado em torno de 2.000, além de apresentar um aumento constante de workshops submetidos (atingindo 247 em 2015, 260 em 2016 e 281 em 2017) e aprovados (chegando a 105, em 2015). Ademais, o Fórum tem possibilitado o debate de uma vasta gama de temas relacionados à governança da internet, muitos dos quais não encontram outros ambientes de discussão multissetorial — especialmente aqueles que não abordam questões técnicas. Esse aspecto é, sem dúvida, uma das principais razões para o crescente destaque do Fórum [10].

O Brasil é um dos países com participação mais significativa no IGF, em grande medida, devido ao destaque internacional do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), considerado um modelo internacional de governança multissetorial. O país é o único no mundo que já recebeu duas edições do IGF: em 2007, no Rio de Janeiro, e em 2015, em João Pessoa. Em ambas as ocasiões, houve grande êxito e elevado padrão de organização, alcançados, em boa parte, graças à liderança do CGI.br e ao financiamento integral das despesas por ele garantido [10].

A relevância brasileira é tamanha que, conforme mencionado no artigo 6º do Estatuto do LACNIC (Registro de Endereços da Internet para a América Latina e o Caribe), o CGI.br não apenas representa o Brasil, como também é um dos membros fundadores da organização [11].

O setor empresarial e sociedade civil
Quando a ICANN foi criada em 1998, uma das principais preocupações do setor empresarial foi a proteção de marcas registradas. Muitas empresas enfrentaram problemas com a ciberespeculação e o mau uso das suas marcas registradas por indivíduos que eram rápidos o suficiente para registrá-las antes, problema que resultou na criação da Política para Resolução Uniforme de Litígios sobre Nomes de Domínios (Universal Dispute Resolution Procedures – UDRP).

Além delas, Google, Google, Facebook e X estão se envolvendo cada vez mais na governança da internet, pois seus modelos de negócios são diretamente impactados por regulamentações governamentais sobre proteção de dados e privacidade. Produtores de conteúdo como a Disney também desempenham um papel significativo, concentrando-se em manter sua influência global e proteger direitos autorais em meio a vários desafios de governança da internet, como propriedade intelectual e segurança cibernética. E a sociedade civil também surgiu como uma forte defensora de uma abordagem multissetorial, participando ativamente de processos de governança e promovendo visões alternativas, embora haja uma divisão entre organizações da sociedade civil de países desenvolvidos e em desenvolvimento em relação ao equilíbrio de poder entre a ação governamental e a indústria da Internet [2].

Conclusões
A governança da internet, então, abrange uma gama diversificada de atores, levando a debates complexos sobre os papeis e as responsabilidades de cada parte interessada a partir de diferentes perspectivas e interesses [2]. Historicamente partem-se, então, de modelos de governança que são mais calcados nas dinâmicas de mercado — e mais centralizados na figura/papel do Estado — e se chegam a modelos atuais, mais plurais e que reconhecem os múltiplos polos de poder político na internet.

A regulamentação pública de comando e controle da governança da internet, que de início previa uma autorregulamentação baseada nas leis de mercado, atualmente depreende um nível de coordenação e de regulamentação de atores interdependentes que atuam na ausência de uma autoridade política abrangente. O Estado, neste contexto, não seria mais visto como o centro de controle da sociedade, mas como um dos múltiplos atores atuantes neste setor [6].

Por fim, a adoção do entendimento de “múltiplos polos de poder” na compreensão da governança da internet acaba por tornarem muito restritivas quaisquer abordagens de compreensão que se atenham a aspectos meramente institucionais (incluída aqui a responsabilidade do Estado neste campo).

E modelos dissonantes de proposições mais atuais de modelos de governança podem acabar por subtraírem elementos de compreensão daqueles constituídos em um ambiente de rede, que abarcam neles diversos arranjos público-privados em assuntos como interoperabilidade, definições de padrões ou filtragem de conteúdo on-line [7].


Referências
[1] ŽOLNERČÍKOVÁ, Veronika. ICANN: transformation of approach towards internet governance. Masaryk University Journal Of Law And Technology, v. 11, n. 1, p. 155-174, 30 jun. 2017. Masaryk University Press. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5817/mujlt2017-1-8. Acesso em: 29 mar. 2025.

[2] KURBALIJA, J. Uma introdução à governança da Internet. – São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernoCGIbr_Uma_Introducao_a_Governanca_da_Internet.pdf. Acesso em: 29 mar. 2025.

[3] CARR, Madeline. Power Plays in Global Internet Governance. Millennium: Journal of International Studies, v. 43, n. 2, p. 640-659, 2015. SAGE Publications. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/0305829814562655. Acesso em: 29 mar. 2025.

[4] VAN EETEN, Michel Jg; MUELLER, Milton. Where is the governance in Internet governance? New Media & Society, v. 15, n. 5, p. 720-736, 2012. SAGE Publications. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/1461444812462850. Acesso em: 29 mar. 2025.

[5] ALMEIDA, Virgilio A.F.; DONEDA, Danilo; MONTEIRO, Marilia. Governance Challenges for the Internet of Things. Ieee Internet Computing, v. 19, n. 4, p. 56-59, 2015. Institute of Electrical and Electronics Engineers (IEEE). Disponível em: http://dx.doi.org/10.1109/mic.2015.86. Acesso em: 29 mar. 2025.

[6] HOFMANN, Jeanette; KATZENBACH, Christian; GOLLATZ, Kirsten. Between coordination and regulation: finding the governance in internet governance. New Media & Society, v. 19, n. 9, p. 1406-1423, 2016. SAGE Publications. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/1461444816639975. Acesso em: 29 mar. 2025.

[7] EPSTEIN, Dmitry; KATZENBACH, Christian; MUSIANI, Francesca. Doing internet governance: practices, controversies, infrastructures, and institutions. Internet Policy Review, v. 5, n. 3, p. 1-14, 2016. Internet Policy Review, Alexander von Humboldt Institute for Internet and Society. Disponível em: http://dx.doi.org/10.14763/2016.3.435. Acesso em: 29 mar. 2025.

[8] MASARYK, Veronika. ICANN: Transformation of Approach towards Internet Governance. Masaryk University Journal of Law and Technology, v. 11, n. 1, p. 155–174, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.5817/MUJLT2017-1-8. Acesso em: 30 mar. 2025.

[9] INTERNET CORPORATION FOR ASSIGNED NAMES AND NUMBERS (ICANN). Bylaws for Internet Corporation for Assigned Names and Numbers: A California Nonprofit Public-Benefit Corporation – ICANN. 2025. Disponível em: https://www.icann.org/en/governance/documents/bylaws-for-internet-corporation-for-assigned-names-and-numbers-a-california-nonprofit-public-benefit-corporation-icann-09-01-2025-en. Acesso em: 30 mar. 2025.

[10] NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DO PONTO BR. Fórum de Governança da Internet [livro eletrônico]: relatórios dos dez primeiros anos do IGF. Tradução: Linguagem Idiomas. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2017. (Cadernos CGI.br Referências). Disponível em: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR. Acesso em: 29 mar. 2025.

[11] LACNIC. Estatuto Social. Disponível em: https://www.lacnic.net/46/3/lacnic/estatuto. Acesso em: 28 mar. 2025.


JOSÉ HENRIQUE MARTINS DE ARAÚJO – é pesquisador no Centro de Estudos em Governança da Internet do Legal Grounds Institute, mestrando em Tecnologias da Informação e Comunicação (UFSC), pós-graduado em Direito Tributário (Damásio Educacional) e em Gestão de Instituições Públicas (IFRO), graduado em Administração (Unisul) e técnico do Seguro Social do Instituto Nacional do Seguro Social.

MATEUS ANDRADE DOS SANTOS – é pesquisador no Centro de Estudos em Governança da Internet do Legal Grounds Institute, advogado, graduado em Direito pela instituição UniSALESIANO (Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium) e pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho na ESA (Escola Superior de Advocacia de São Paulo).

Sobre o autor
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Redação LGI

Produzindo estudos sobre políticas públicas para a comunicação social, novas mídias, tecnologias digitais da informação e proteção de dados pessoais, buscando ajudar na construção de uma esfera pública orientada pelos valores da democracia, da liberdade individual, dos direitos humanos e da autodeterminação informacional, em ambiente de mercado pautado pela liberdade de iniciativa e pela inovação.
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