A transformação da prática jurídica frente ao avanço da inteligência artificial

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Por Juliano Maranhão

Publicado originalmente no Jota

A evolução tecnológica, particularmente o desenvolvimento da inteligência artificial (IA), está promovendo transformações substanciais na prática jurídica contemporânea, o que realçará a importância do raciocínio jurídico, o gerenciamento estratégico e o domínio da tecnologia. De início, é relevante destacar que, no estado atual da arte, a aplicação da IA no Direito não visa a substituir o raciocínio jurídico humano, mas sim complementá-lo, otimizando a gestão de informações e a produtividade dos profissionais.

Avanços significativos foram observados nos últimos anos em metodologias de processamento de linguagem natural, permitindo a geração, síntese e sistematização de conteúdo jurídico. Isso reduz substancialmente o tempo dedicado à produção e análise de material, permitindo que os advogados concentrem-se em tarefas de maior valor agregado, como a elaboração de estratégias jurídicas e o raciocínio crítico.

A fronteira da pesquisa em IA e Direito está concentrada em duas áreas principais: a exploração dos Modelos de Linguagem de Grande Escala (Large Language Models – LLMs) para aplicações jurídicas e a integração entre sistemas simbólicos de representação do conhecimento jurídico e  métodos de aprendizado de máquina. Contudo, é preciso lembrar que, apesar do progresso, os avanços em IA aplicada ao direito são sobretudo verificados em métodos estatísticos e a maioria das aplicações, até mesmo dos modelos mais avançados de processamento de linguagem natural, não contempla o raciocínio jurídico, ou seja, essas tecnologias não substituem a capacidade humana de interpretação, construção de conceitos jurídicos e formulação de novas soluções para questões complexas. Portanto, aqueles que dominarem o conhecimento e raciocínio jurídico serão os profissionais mais valorizados no mercado.

Outra transformação significativa advinda com a IA é a análise preditiva de dados jurídicos. Ferramentas de IA capazes de prever resultados judiciais e analisar tendências em decisões de tribunais estão se tornando cada vez mais comuns. A análise de dados jurídicos tem difundido, com modelos preditivos que informam magistradas e advogadas do desempenho de cortes judiciais e da perspectiva de conflitos relativos a variados contratos e cláusulas.

Essa abordagem não apenas melhora a eficiência dos profissionais, mas também implica mudança paradigmática na forma como casos são abordados e estratégias são planejadas. Advogadas e magistradas precisam agora considerar o impacto de suas decisões em um contexto mais amplo, levando em conta as políticas de adjudicação das cortes e os impactos sociais e econômicos de suas decisões.

Profundas alterações estão por vir, com a potencial transformação da análise vertical pelo jurista de direitos no âmbito de um caso em particular para uma análise preditiva horizontal do desempenho de uma corte judicial em diversos domínios. Magistradas poderão passar a considerar não somente as argumentações de determinado caso, mas as consequências da decisão no âmbito de todos os resultados da corte e seus impactos na sociedade.

Em vez de raciocinar apenas sobre o direito pleiteado em determinado caso, a magistrada considerará também a política de adjudicação por parte da corte. Como consequência, escritórios de advocacia terão de incluir políticas de adjudicação em seu arsenal argumentativo. E terão também de considerar cláusulas contratuais que são menos prováveis de resultar conflitos, em um empenho cooperativo com a outra parte do contrato. Isso demandará certo conhecimento de análise de dados para que se possa raciocinar horizontal e estrategicamente, para se reduzir e administrar conflitos jurídicos.

Assim, a advogada do futuro estará imerso tanto no desenvolvimento quanto na gestão das tecnologias de inteligência artificial para impulsionar sua produtividade. Será essencial adquirir conhecimentos, não de programação, mas de lógica computacional, permitindo uma colaboração eficaz com engenheiros jurídicos e programadores na personalização de ferramentas de IA de acordo com o perfil de sua prática.

Além disso, para uma operação mais eficiente e experiente de plataformas de IA, a compreensão a compreensão de seu funcionamento e domínio de sua operação será crucial. As advogadas em início de carreira devem incorporar o uso de ferramentas de IA em suas práticas profissionais e dedicar-se ao aprendizado dos princípios básicos de computação, incluindo lógica, raciocínio e argumentação jurídica, bem como fundamentos de análise de dados (data analytics), com ênfase em dados jurídicos.

Essa mudança, naturalmente, passa pelo treinamento destes profissionais do futuro. A questão fundamental para preparar futuros juristas para um mundo orientado pela IA é reduzir a quantidade de informações e desenvolver habilidades e capacidades dos estudantes que estejam associadas ao raciocínio jurídico, ao gerenciamento estratégico de casos jurídicos e ao domínio das tecnologias.

Na Universidade de São Paulo, temos enfatizado o conteúdo sobre raciocínio jurídico, lógica e argumentação, concentrando-nos em atividades que exigem dos estudantes a capacidade de raciocinar e debater sobre casos concretos. Adicionalmente, desde o início de seus estudos, os alunos são introduzidos à lógica formal e conceitos fundamentais da computação e inteligência artificial. Estamos, também, dedicados a avaliar e criar uma política para o uso responsável e transparente de ferramentas de inteligência artificial em nossas salas de aula. Atualmente, por exemplo, conduzimos pesquisas empíricas sobre o uso do GPT por alunos de graduação e pós-graduação, visando a estabelecer políticas e diretrizes claras sobre a aplicação da IA generativa no ambiente educacional, tanto por docentes quanto por discentes.

Com as transformações em curso, não se vislumbra uma diminuição no mercado jurídico; ao contrário, é provável que ele cresça. Os escritórios de advocacia serão mais eficazes na elaboração de documentos jurídicos com o auxílio de ferramentas de inteligência artificial. Da mesma forma, os cidadãos farão uso de IA para realizar tarefas jurídicas que anteriormente exigiam a consulta a um especialista. Isso resultará em público mais informado sobre seus direitos e oportunidades legais, impulsionando a procura por serviços jurídicos mais complexos. Portanto, espera-se que cidadãos mais esclarecidos busquem profissionais mais capacitados, elevando assim a qualidade do conhecimento e dos serviços oferecidos no setor jurídico.

Assim, a integração da IA no campo jurídico não é uma ameaça à profissão, mas uma oportunidade para que advogados e advogadas aprimorem suas habilidades e aumentem sua eficiência, combinando competências em raciocínio jurídico, gestão estratégica de casos e domínio das novas tecnologias.

Sobre o autor
Juliano Maranhão

Juliano Maranhão

Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt. Pós-doutorado na Faculdade de Ciência da Computação da Universidade de Utrecht. Membro do Comitê Executivo da International Association for Artificial Intelligence and Law (IAAIL). Pesquisador Associado do Center for Artificial Intelligence USP-IBM (C4AI/USP) e do Centro de Pesquisa Inteligência Artificial Recriando Ambientes – IARA. Diretor do Legal Grounds Institute e da Lawgorithm (USP).
Juliano Maranhão

Juliano Maranhão

Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt. Pós-doutorado na Faculdade de Ciência da Computação da Universidade de Utrecht. Membro do Comitê Executivo da International Association for Artificial Intelligence and Law (IAAIL). Pesquisador Associado do Center for Artificial Intelligence USP-IBM (C4AI/USP) e do Centro de Pesquisa Inteligência Artificial Recriando Ambientes – IARA. Diretor do Legal Grounds Institute e da Lawgorithm (USP).

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