Artigo: Um tom liberal para regulação digital

O que está em jogo é garantir e fomentar uma pulsante criatividade da sociedade para que pessoas comuns possam de fato criar e inovar no âmbito digital

Por Ricardo Campos

Originalmente publicado no Jornal OGLOBO.

Há uma atual tendência de movimentação do pêndulo político da esquerda para a direita no globo. Pode-se ler esse movimento a partir de diversos cenários políticos como a vitória, pela primeira vez, do partido de direita AfD (Alternativ für Deutschland) na importante cidade de Tühringen, na Alemanha, no mês de agosto. A mesma tendência se observa no Brasil e nos Estados Unidos. Caso se concretize o movimento pendular político que se desenha, para o tema da regulação digital, qual seria a agenda liberal? Ter-se-ia uma agenda liberal no sentido histórico-político da tradição do liberalismo ou seria um desordenado anything goes para o mundo digital?

O historiador alemão Werner Plumpe reitera que o liberalismo moderno se caracteriza por ser uma contínua revolução ao longo de crises, reconstruções e reestabilização [1]. Dentre críticas e apologias ao ideário liberal, o que de fato fica como aquisição civilizatória é a descentralização de uma sociedade marcada por vínculos hierárquicos ao possibilitar a pessoas comuns e normais, como assinala a economista de Chicago Deirdre McCloskey, um grau de liberdade para serem criativas e inovarem [2]. Segundo Joel Mokyr, a melhor definição de revolução industrial (e isso vale ainda mais para a atual revolução tecnológica-industrial que estamos vivendo) é o conjunto de eventos que colocou a tecnologia, e sua criação por pessoas comuns, na posição de principal mecanismo de mudança econômica e social [3].

Aliás, liberdade de criação para pessoas comuns é a maior mensagem do liberalismo moderno. Vale lembrar também que as liberdades liberais se tornaram pré-condição para outros avanços civilizatórios, como a própria democracia e o Estado social. Sem liberdades liberais e decorrente inovação na sociedade privada, por exemplo, não há (re)distribuição do Estado social.

Para nosso tema da regulação digital, qual seria então a agenda liberal que assegure o cerne do legado liberal? Ou seja, de que modo a regulação digital andaria de mãos dadas com o exercício amplo e indiscriminado da liberdade criativa e consequente geração de novos conhecimentos? Do ponto de vista macro, seria a de se evitar (ou mitigar) os atuais feudos digitais onde poucos inovam e muitos são produtos. A solução, porém, não seria seguir um caminho de “socialização da propriedade”, que sempre teve uma trajetória anunciada e previsível de externalidades negativas para sociedade como um todo. Pelo contrário, aqui o papel do Estado e das regulações estatais deveria garantir uma “redistribuição do conhecimento”, hoje consideravelmente concentrado em poucos atores, criando formas jurídicas de acesso destas pequenas e medias empresas ao conhecimento concentrado nessas poucas empresas. Nesse sentido, seguir-se-iam inevitavelmente dois pilares centrais de Hayek: o fomento da geração de conhecimento social disperso na sociedade e (evitar) a pretensão de conhecimento do Estado.

Em termos concretos, há o que fazer e o que não fazer. Na Europa, por exemplo, o relatório oficial deste mês da Comissão Europeia (denominado relatório Draghi) sinalizou que a regulação europeia de inteligência artificial mal entrou em vigor e já está afetando negativamente a competitividade e a inovação europeia no mercado global. Um responsável caminho brasileiro no tema deveria seguir dois pilares. Primeiro, criar mecanismos de observação nas instituições já existentes, quanto ao surgimento de danos setoriais concretos e, consequentes formas, a posteriori, de evitá-los. A exemplo disso, a polêmica propaganda de Elis Regina não legitima uma regulação abrangente; pode ser, no presente, perfeitamente abarcada pelo Conar. Do mesmo modo, também as emergentes demandas trabalhistas de IA poderiam num primeiro momento encontrar abrigo na grande estrutura da Justiça do Trabalho. Para as questões eleitorais, temos o TSE, e assim por diante. Segundo, criar direitos acadêmico-abstratos para a nova revolução tecnológica em um país marcado negativamente pela extrema judicialização de demandas sociais, parece ser também uma crônica anunciada.

Outro importante tema nacional é rediscutir o modelo de financiamento da infraestrutura física que garanta a inovação no mundo digital. O atual modelo propicia relações parasitárias entre serviços digitais e empresas de telecomunicação com externalidades negativas para sociedade. A partir de números concretos do Brasil e do mundo, apenas três feudos digitais utilizam em mais de 50% da infraestrutura, sem contribuir para a expansão desta [4]. Uma internet sustentável é precondição para a digitalização de setores como saúde, educação, indústria, transporte e agronegócio. Repensar esse modelo de financiamento é projetar, de forma responsável, um cenário de inovação brasileira a médio e longo prazo para sociedade.

Ao final, o que realmente está em jogo, a partir de uma pauta liberal, é garantir e fomentar uma pulsante criatividade da sociedade para que, pessoas comuns — jovens, pequenas e médias empresas — possam de fato criar e inovar no âmbito digital. Isso não somente gera automaticamente novas e sustentáveis receitas públicas, mas também imprime ao contexto brasileiro da nova revolução técnico-industrial uma posição de participante ativo, e não apenas de produto passivo como atualmente, dessa revolução em curso. Parece simples, e é.

*Ricardo Campos é docente na Goethe University (Alemanha), vencedor dos prêmios Werner Pender (2021) e academia europeia (2022).

NOTAS
[1] Werner Plumpe, Das Kalte Herz. Kapitalismus: Die Geschichte einer andauernden Revolution. Berlin 2019.
[2] Deirdre McCloskey, Bourgeois Dignity: Why Economics Can’t Explain the Modern World, Chicago 2010.
[3]Joel Mokyl, The Enlightened Economy. Britain and the Industrial Revolution 1700-1850, Yale University Press 2011p. 5.
[4] Sobre o tema ver Ricardo Campos, A Nova Relação entre Infraestrutura e Serviços Digitais. Fair Share, Neutralidade de Rede e Sustentabilidade Digital, Sao Paulo 2024.

Sobre o autor
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Ricardo Campos

Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Consultor jurídico e parecerista
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Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Consultor jurídico e parecerista

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