Blackbox e manipulação de sistemas de IA na prática forense

Por Vinícius Almada Mozetic, membro-pesquisador do Legal Grounds, e Alexandre Morais da Rosa

Publicado originalmente no Conjur.

São cada vez mais intensas e controversas as discussões de como a inteligência artificial (IA) tem se tornado uma ferramenta essencial na prática forense, facilitando a resolução de crimes e a análise de evidências (Russell; Norvig, 2016). No entanto, surgem preocupações éticas e de segurança quando se tenta contornar os “filtros” internos de sistemas de IA, como o ChatGPT, para obter informações de forma ilegal. Este Op-Ed examina brevemente os riscos ocultos dessas práticas e como a opacidade dos modelos de “caixa preta” pode minar a confiança nas análises forenses.

As discussões sobre a utilização de modelos de IA já estão focadas na produção de decisões judiciais em matéria penal, ou seja, no debate sobre as (im)possibilidades de modelos de apoio à decisão penal. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou as Resoluções 332/2020 e 363/2021 e a Portaria 271/2020, regulamentando a pesquisa, o desenvolvimento e a implementação de Modelos nos Tribunais (Peixoto, 2020). No entanto, muitas iniciativas acontecem “fora do radar”, sem um mínimo de maturidade tecnológica, no “oba-oba” da aparente facilidade da inteligência artificial generativa.

Embora não proibida no domínio penal, a IA “não deve ser estimulada, sobretudo com relação à sugestão de modelos de decisões preditivas” (Resolução 332/2020, artigo 23). Confira a publicação sobre “O Manto de Invisibilidade do uso da Inteligência Artificial no Processo Penal” ler (aqui) pois, este artigo já chamava a atenção para a complexidade do tema e para a questão relevante e pouco problematizada do “uso” de prova adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle, em desconformidade com as normas de transparência, produção, tratamento de dados e auditabilidade algorítmica.

Filtros

Os filtros internos são cruciais para impedir o uso mal-intencionado da IA protegendo a integridade dos dados e garantindo conformidade com normas legais e éticas (Floridi; Cowls, 2019). Esses filtros atuam como barreiras, evitando que informações sensíveis ou ilegais sejam acessadas ou manipuladas. A transparência desses filtros é essencial para manter a confiabilidade e a legitimidade das ferramentas de IA na prática forense (Goodman; Flaxman, 2017).

Qualquer uso de IA em contextos forenses deve respeitar as regras do jogo para evitar abusos e garantir a integridade das provas. No entanto, oportunistas operam sob o manto aparente da invisibilidade, mas deixam pegadas digitais que podem ser identificadas. Basta saber pedir as informações de acesso [logs, p.ex.].

Onde está o problema? Os modelos de “caixa preta” são frequentemente criticados pela falta de explicabilidade e transparência. Na prática forense tanto clareza quanto precisão são indispensáveis, razão pela qual a utilização desses modelos pode ser problemática (Doshi-Velez; Kim, 2017).

A incapacidade de explicar como um modelo de IA chegou a uma determinada conclusão compromete a integridade das análises forenses e a confiança pública nos resultados apresentados em tribunal (Lipton, 2018). Além disso, a utilização de modelos de IA por órgãos estatais sem a devida conformidade com normas de transparência e auditabilidade algorítmica impõe um sério risco à concretização de direitos fundamentais e ao devido processo legal.

A ausência de controle efetivo sobre a aquisição e o processamento de dados materializados em provas judiciais pode “legitimar” comportamentos oportunistas e abusivos, criando um “Manto da Invisibilidade” (Bierrenbach, 2021).

Contornar os filtros internos de sistemas de IA não só compromete a segurança, mas também a legalidade das operações forenses. Vamos além…a manipulação desses filtros pode levar a falhas graves na análise de evidências, prejudicando investigações e julgamentos. Além disso, tais práticas podem resultar em sanções legais severas e minar a confiança na aplicação da lei e na justiça (Mittelstadt et al., 2016).

A questão do “uso de prova”, por exemplo, já dito anteriormente, adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle em desconformidade com a normativa do CNJ e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ilustra bem os perigos envolvidos. O paradoxo se estabelece quando práticas vedadas internamente são aceitas externamente, criando um dualismo incoerente.

Em face do exposto, manter filtros robustos e transparentes nos sistemas de IA é essencial para proteger contra o uso ilegal e antiético dessas tecnologias na prática forense. A confiança nas análises forenses depende de um equilíbrio (…) de práticas éticas e de segurança no desenvolvimento de IA. Qual é o desafio?

O desafio é desenvolver IA que seja ao mesmo tempo poderosa e transparente, promovendo uma prática forense que respeite tanto a precisão quanto a ética (Rudin, 2019). Ao que tudo indica, a utilização responsável da IA alinha-se melhor com a proteção dos direitos fundamentais e o Devido Processo Legal.

___________________

Referências

Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resoluções 332/2020 e 363/2021.

DOSHI-VELEZ, F.; KIM, B. Towards a Rigorous Science of Interpretable Machine Learning. [ArXiv:1702.08608], 2017. Disponível em: https://arxiv.org/abs/1702.08608. Acesso em: 18 jul. 2024.

FLORIDI, L.; COWLS, J. et al. An Ethical Framework for a Good AI Society: Opportunities, Risks, Principles, and Recommendations. Minds and Machines, v. 28, n. 4, p. 689-707, 2018. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s11023-018-9482-5. Acesso em: 18 jul. 2024.

GOODMAN, B.; FLAXMAN, S. European Union Regulations on Algorithmic Decision-Making and a “Right to Explanation”. AI Magazine, v. 38, n. 3, p. 50-57, 2017. Disponível em: https://ojs.aaai.org/index.php/aimagazine/article/view/2741. Acesso em: 18 jul. 2024.

LIPTON, Z. C. The Mythos of Model Interpretability. Communications of the ACM, v. 61, n. 10, p. 36-43, 2018. Disponível em: https://dl.acm.org/doi/10.1145/3233231. Acesso em: 18 jul. 2024.

MITTELSTADT, B. D.; ALLAIRE, J. C.; TSAMADOS, A. The Ethics of Algorithms: Mapping the Debate. Big Data & Society, v. 3, n. 2, p. 2053951716679679, 2016. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/2053951716679679. Acesso em: 18 jul. 2024.

PEIXOTO, Fabiano Hartmann. “Referenciais Básicos”.

RUDIN, C. Stop Explaining Black Box Machine Learning Models for High Stakes Decisions and Use Interpretable Models Instead. Nature Machine Intelligence, v. 1, n. 5, p. 206-215, 2019. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s42256-019-0048-x. Acesso em: 18 jul. 2024.

RUSSELL, S.; NORVIG, P. Artificial Intelligence: A Modern Approach. 3. ed. Upper Saddle River: Prentice Hall, 2016.

BIERRNEBACH, Juliana. Manto da Invisibilidade. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-07/limite-penal-manto-invisibilidade-uso-ia-processo-penal.

Vinícius Almada Mozeticé advogado e gestor de compliance especializado em inteligência artificial, com pós-doutorado e doutorado em direito público pela Unisinos (RS), além de um doutorado em direito pela Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha.

Alexandre Morais da Rosaé juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Sobre o autor
Picture of Legal Grounds Institute

Legal Grounds Institute

Produzindo estudos sobre políticas públicas para a comunicação social, novas mídias, tecnologias digitais da informação e proteção de dados pessoais, buscando ajudar na construção de uma esfera pública orientada pelos valores da democracia, da liberdade individual, dos direitos humanos e da autodeterminação informacional, em ambiente de mercado pautado pela liberdade de iniciativa e pela inovação.
Picture of Legal Grounds Institute

Legal Grounds Institute

Produzindo estudos sobre políticas públicas para a comunicação social, novas mídias, tecnologias digitais da informação e proteção de dados pessoais, buscando ajudar na construção de uma esfera pública orientada pelos valores da democracia, da liberdade individual, dos direitos humanos e da autodeterminação informacional, em ambiente de mercado pautado pela liberdade de iniciativa e pela inovação.

Leia mais

Fair share

Europa enfrenta desafios de competitividade e busca liderança em inovação tecnológica

O relatório “The Future of European Competitiveness” aborda os desafios da Europa em setores como inteligência artificial e computação quântica. O estudo propõe aumentar os investimentos em inovação tecnológica e criar uma estratégia conjunta para descarbonização e segurança econômica, visando recuperar competitividade frente a potências como Estados Unidos e China.

Leia Mais »
Tradutor »
Pular para o conteúdo