Publicado originalmente no Teletime em 18/10/24, 17:25
O grande tema de regulação de telecomunicações e digital no continente europeu gira em torno da já anunciada Diretiva das Redes Digitais (Digital Networks Act). Apesar de ter um horizonte ainda turvo pela nova eleição do parlamento europeu, cada vez mais Digital Networks Act é tema na Europa. Iniciativas muito semelhantes também já foram previstas na agenda regulatória da Anatel para 2023-2024, que conta por exemplo, com a simplificação da regulamentação dos serviços de telecomunicações e a avaliação quanto à necessidade de regulamentação dos deveres dos usuários de telecomunicações, nos termos do art. 4º, I, da LGT.
Ambas as agendas, europeia e brasileira, se inserem em um contexto de transformação do ecossistema digital, marcado por uma crescente convergência, conceito que se refere à “possibilidade de projetar e distribuir ofertas anteriormente produzidas e disseminadas em plataformas técnicas separadas em uma única plataforma”1. Tal fenômeno, que será ainda intensificado com a implementação da TV 3.0 nos próximos anos, faz com que todos os meios informacionais – voz, dados e vídeo – possam ser agregados em todos os tipos de rede e em diferentes dispositivos e aplicações. Essa simbiose tecnológica entre meios coloca a estrita separação entre a camada da infraestrutura física e a camada de aplicações introduzida pelo Marco Civil da Internet de 2014 em dificuldades.
Também nesse sentido, há a chamada substitutibilidade, por meio da qual diversos serviços oferecidos pelos provedores de conteúdo e aplicações rivalizam, na prática, com aqueles oferecidos tradicionalmente pelas empresas de telecomunicações2. Nos últimos anos, ambos os fenômenos chamaram atenção sobre o desigual tratamento regulatório dado a esses dois setores, qual seja, telecomunicações e aplicações de internet. Isso porque, apesar de oferecerem, em muitos casos, serviços semelhantes, estão sob regimes regulatórios assimétricos. A discussão diz respeito, por exemplo, ao chamado level playing field, que defende que serviços com finalidades semelhantes tenham igualdade de condições competitivas3.
Cenário complexo
Novas iniciativas legislativas na Europa (e no Brasil) buscam reconhecer a nova complexidade do novo cenário e encontrar as melhores saídas para que a transformação digital seja um ganho para todos e não para poucos. Fala-se em sustentabilidade a longo prazo, em benefício de toda a sociedade, e também em estimulo à competitividade. Neste processo, atenção especial é dada às infraestruturas de telecomunicações, que constituem hoje um pressuposto fático para os avanços da digitalização. Infraestruturas seguras e resilientes são condição fundamental seja para o simples acesso com qualidade a conteúdos e aplicações pelos usuários, seja para a prestação de serviços de saúde, industria, agronegócios, transporte e assim por diante. Também o são para a nova geração de tecnologias, que envolve dispositivos de Internet das Coisas (IoT), inteligência artificial, veículos autônomos, dentre outros. Sustentabilidade da infraestrutura e simplificação regulatória.
Buscando respondê-la, a Comissão Europeia publicou, em fevereiro deste ano, um aguardado white paper, que apontou tanto os desafios enfrentados no bloco quanto possíveis cenários para solucioná-los. Dentre as diversas questões tratadas, merece destaque a iniciativa de ampliação dos objetivos da atual estrutura regulatória, a fim de atrair investimentos e fomentar a concorrência, e de modo a garantir condições equitativas e direitos e obrigações equivalentes para todos os atores e usuários finais das redes digitais. Além disso, foi levantada a possibilidade de futuras intervenções nas relações entre grandes empresas de tecnologia e provedores de serviços de conexão à internet, como forma de garantir maior cooperação.
Questões semelhantes foram apontadas no recente relatório sobre o futuro da competitividade europeia encomendado pela Comissão Europeia a Mario Draghi4. Ao analisar o contexto mais amplo das indústrias e empresas no Mercado Único, observa-se a necessidade de fechar a lacuna de inovação com Estados Unidos e China, especialmente em relação a tecnologias de ponta, e de aumentar a segurança e reduzir dependências. Para tanto, sugere-se a melhoria da coordenação e a redução dos encargos regulatórios e administrativos, que estariam dificultando a competitividade e os investimentos. Quanto ao setor de telecomunicações, expressamente mencionado, recomenda-se, dentre outros, a redução de regulamentação ex ante a nível nacional, que deve dar lugar à aplicação de regras de concorrência ex post em casos de abuso de posição dominante em situações concretas ou danos gerais concretos; e o compartilhamento dos investimentos comerciais na infraestrutura entre as big techs e as operadoras de rede, como forma de aumentar a capacidade de investimento.
De forma geral, pode-se concluir, portanto, que para lidar com os desafios e a complexidade da transformação digital, a União Europeia tem apontado para dois caminhos no setor de telecomunicações: (i) um movimento de simplificação e nivelação regulatória, a fim de reduzir os encargos e fomentar a inovação e a competitividade e (ii) uma compreensão acerca da necessidade de se repensar o atual modelo de financiamento das redes, incluindo também as grandes empresas de tecnologia, rumo a maiores investimentos. Como proposta concreta para efetivar tais saídas, é esperada, para o próximo ano, a chamada Diretiva das Redes Digitais (Digital Networks Act), que parte do pressuposto de que é necessário se reavaliar o cenário das infraestruturas digitais, a fim de resolver problemas de conectividade, espectro e investimento.
Lei ousada
Apesar de ainda não haver muitos detalhes a respeito de seu conteúdo, Thierry Breton, ex comissário para o Mercado Interno, já afirmou que as bases fundamentais para a futura Lei estão no White paper lançado em fevereiro5. Breton aponta, ainda, que esta será uma lei “ousada, orientada para o futuro e inovadora, que redefinirá o DNA da regulamentação das telecomunicações da UE”6. A promessa, portanto, indica que a lei enfrentará os desafios em termos de estruturas de mercado e paradigmas regulatórios que marcam o cenário do ecossistema digital atual. Ademais, espera-se que seja garantido às operadoras de rede o espaço e a liberdade necessários para avançarem na inovação e na competitividade, como já tem sido feito, por exemplo, no Reino Unido, a partir da atuação da Oxfam7.
Recentemente, a agência – agora independente em relação ao framework da União Europeia – publicou um documento de revisão das regras da neutralidade de rede, com orientações voltadas à oferta de serviços especializados, ao zero-rating e ao gerenciamento de tráfego8. Observa-se um movimento de flexibilização destes aspectos, sob a justificativa de que, ao limitarem as atividades dos provedores de conexão à internet, as regras têm restringido sua capacidade de inovar, desenvolver novos serviços e gerenciar suas redes, em prejuízo claro para os consumidores e a população. Portanto, a Ofcom defende que a neutralidade de rede deva seguir a evolução da tecnologia, buscando sempre garantir a inovação, o investimento e o crescimento tanto dos provedores de conteúdo e aplicações quanto dos ISPs. Nesse contexto, a neutralidade de rede não pode servir anacronicamente e inadequadamente como fator de engessamento de um setor e libertador de outro.
Tanto a agenda Europeia quanto a Brasileira apontam para o mesmo horizonte regulatório. A agenda regulatória da Anatel, por exemplo, com as recentes Tomadas de Subsídios da Agência, revela o reconhecimento da imprescindibilidade de um novo quadro regulatório, adaptado às necessidades atuais. A título exemplificativo, a proposta de reunir e simplificar regras espalhadas em diversos regulamentos no „Regulamento Geral de Serviços de Telecomunicações” pode também ser visto (ou direcionado) para redução de encargos regulatórios do setor de telecomunicações propiciando um maior poder competitivo frente as empresas de tecnologia e reduzindo a assimetria regulatória entre os setores. Nesse sentido, o Brasil, através da Anatel, poderá igualmente contribuir com o avanço dos debates europeus em torno da futura diretiva Digital Networks Act, visto que ambos horizontes regulatórios tendem a iluminar o mesmo problema: necessidade de readaptação do arcabouço regulatório para a nova complexidade digital.
- HANS-BREDOW-INSTITUT, Zur Entwicklung der Medien in Deutschland zwischen 1998 und 2007. Wissenschaftliches Gutachten zum Medien- und Kommunikationsbericht der Bundesregierung. Hamburg, 2008. ↩︎
- FAROOQ, Muhammad; RAJU, Valliappan. Impact of Over-the-Top (OTT) Services on the Telecom Companies in the Era of Transformative Marketing, Global Journal of Flexible Systems Management, 2019, v. 20, n. 2, p. 178. ↩︎
- EUROPEAN PARLIAMENTARY RESEARCH SERVICE. Regulating electronic communications: A level playing field for telecoms and OTTs?, 2016; WILLIAMSON, Brian. Next generation communications & the level playing field: what should be done? Communications Chambers, jun. 2016. ↩︎
- The future of European competitiveness: Report by Mario Draghi: https://commission.europa.eu/topics/strengthening-european-competitiveness/eu-competitiveness-looking-ahead_en#paragraph_47059 ↩︎
- Cf. https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_24_941 ↩︎
- Cf. https://www.digital-networks-act.com ↩︎
- Cf. https://www.ofcom.org.uk/internet-based-services/network-neutrality/net-neutrality-review/ ↩︎
- Statement: Net Neutrality Review, 21.10.2022, disponível em: https://www.ofcom.org.uk/internet-based-services/network-neutrality/net-neutrality-review/ ↩︎