Por Ricardo Campos, Carolina Xavier e Samuel Oliveira
Publicado originalmente no Conjur.
Em 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ-UE) decidiu um importante caso que discutia o tratamento de dados pessoais no contexto das atividades de empresas provedoras de motores de busca.
Na ocasião, o tribunal reconheceu a possibilidade de que, a depender das especificidades do caso concreto, tais empresas poderiam ser obrigadas a suprimir determinados conteúdos da lista de resultados como forma de proteger o respeito à privacidade das pessoas.
Tratou-se de uma questão relativa ao balanceamento de direitos fundamentais, na qual foi atribuído maior peso aos direitos protegidos pelo artigo 8º da Convenção Europeia [1] do que aos interesses econômicos da operadora e aos interesses de informação do público em geral.
Apesar de contar com referências e desenvolvimentos anteriores, foi essa decisão do TJ-UE, no caso “Google Spain v. Mario Costeja Gonzáles”, que difundiu internacionalmente o chamado right to be forgotten [2], trazendo, inclusive, a discussão para o Brasil.
Seu reconhecimento pode ser observado a partir da necessidade de se reforçar a proteção dos direitos das pessoas frente aos avanços da internet e seus impactos em elementos como o tempo e o espaço.
De um lado, o espaço virtual é maior, fazendo com que o conteúdo possa ser replicado de forma potencialmente infinita, sempre que for acessado. De outro, cria-se uma condição de eterno presente [3] devido à ampla capacidade de armazenamento e disponibilização de informações online ao longo do tempo. Esse aspecto é acompanhado pela instantaneidade com que tais informações podem ser transmitidas, causando um efeito de persistência.
Como resume Wendy Chun, trata-se do “efêmero duradouro” [4], que faz com que os conteúdos online sejam conformados de forma distinta, aumentando o risco de dano aos direitos dos envolvidos [5], especialmente quanto à sua honra, reputação e privacidade.
E é diante deste contexto que toma forma o reconhecimento do chamado direito ao esquecimento, que garante aos usuários a possibilidade de, dentro de circunstâncias específicas, ter excluídos dados disponíveis online que não forem mais necessários para fins considerados legítimos.
O direito ao esquecimento, que tem sido tratado como manifestação do princípio da dignidade humana, busca oferecer aos indivíduos a possibilidade de um recomeço, de modo a não ter que sofrer, indefinidamente, as consequências negativas de fatos ocorridos no passado [6]. Como resumiu o TJ-UE:
“informações publicadas e disponíveis na Internet há algum tempo podem ter um impacto negativo de longo alcance sobre como a pessoa em questão é percebida pela opinião pública. Há também o risco de outros efeitos prejudiciais: em primeiro lugar, a agregação de informações, que pode levar à criação de um perfil da pessoa em questão (…) e, em segundo lugar, se as informações não forem colocadas em contexto, isso pode significar que um indivíduo que consulta um artigo online sobre outro indivíduo recebe uma imagem fragmentada e distorcida da realidade” [7].
Apesar das múltiplas definições que vêm sendo encontradas na doutrina, pode-se pontuar alguns critérios essenciais para configuração do direito ao esquecimento: as informações devem, no mínimo, ser pretéritas, influenciar negativamente a personalidade do titular e, principalmente, não servir ao interesse público.
De um lado, diferencia-se de questões envolvendo calúnia e difamação por lidar com informações verídicas. Por outro lado, em muito se aproxima do chamado direito à desindexação, mecanismo que garante a impossibilidade de acesso ao conteúdo por meio de motores de busca, mesmo que ele continue disponível no sítio de origem [8].
O tema já foi analisado pelo Supremo Tribunal Federal no famoso “caso Aída Curi”, em que os irmãos da vítima, assassinada nos anos 1950 no Rio de Janeiro, buscavam reparação pela reconstituição do crime pelo programa Linha Direta.
Na ocasião, o STF entendeu pela tese de que o simples poder de obstar a divulgação de fatos verídicos e licitamente obtidos em decorrência da passagem do tempo não seria compatível com a Constituição. No entanto, entendeu-se que “eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
Spacca
A tese, apesar de negar a possibilidade de um direito ao esquecimento entendido de determinado modo, ressalvou tanto as previsões legais específicas sobre o tema — caso do artigo 43, §1º do Código de Defesa do Consumidor ou do artigo 748 do Código de Processo Penal — quanto à avaliação de casos concretos acerca de excessos e abusos.
Isso significa que, além de não ter definido de forma absoluta a aplicação do direito no país, o tribunal manteve uma espécie de abertura para ponderações nos casos concretos nos quais haja tensões entre a liberdade de expressão e os direitos de personalidade — categoria dentro da qual se encontra o direito ao esquecimento.
Remoção de dados e informações pessoais
Ficou claro, portanto, que a matéria poderia (e deveria) ser rediscutida, se necessário. A partir disso, o relatório final elaborado pela comissão de juristas responsável pela reforma do Código Civil tratou do tópico, indo ao encontro dos desenvolvimentos doutrinários e jurisprudenciais, principalmente do STJ.
Na proposta, há um artigo dedicado unicamente ao direito ao esquecimento, que estipula que uma pessoa pode requisitar a remoção permanente de dados ou informações pessoais de um site onde foram inicialmente publicados, desde que tais dados infrinjam seus direitos de personalidade, e desde que certos requisitos sejam cumpridos.
Primeiramente, a informação deve ter sido publicada há um tempo razoável. Adicionalmente, não deve haver interesse público ou histórico vinculado à informação, isto é, deve ter relevância limitada. Para que a remoção seja considerada, deve-se, ainda, demonstrar que a manutenção da informação online pode causar danos significativos ao indivíduo ou seus representantes legítimos.
Além disso, a informação não deve proporcionar benefícios a terceiros, ressaltando a necessidade de sua exclusão para proteger o indivíduo afetado. É necessário também provar que a publicação original foi fruto de um abuso do direito de liberdade de expressão, utilizando-se dessa liberdade de forma prejudicial e sem considerar os direitos alheios.
Finalmente, é mandatória a obtenção de uma autorização judicial para que a remoção seja realizada, assegurando que o processo de exclusão seja revisado e aprovado legalmente.
Além do direito ao esquecimento, a proposta de reforma do Código Civil traz uma previsão expressa quanto ao direito à desindexação. O artigo em questão permite que indivíduos solicitem a remoção de links em mecanismos de busca que apontem para informações que sejam consideradas inadequadas, desatualizadas, abusivas, ou excessivamente prejudiciais.
O objetivo é diminuir a acessibilidade do conteúdo sem necessariamente removê-lo do site de origem, reduzindo assim a exposição pública a materiais potencialmente danosos.
O parágrafo único do artigo especifica os tipos de conteúdo que mais comumente justificam tais pedidos de desindexação, incluindo imagens pessoais explícitas ou íntimas, muitas vezes compartilhadas sem consentimento, conhecidas como pornografia de vingança: a criação e disseminação de pornografia falsa, onde imagens de um indivíduo são usadas sem permissão para criar conteúdo adulto falso; a exposição de informações de identificação pessoal, que podem incluir detalhes como documentos pessoais ou endereços residenciais; e qualquer conteúdo envolvendo menores de idade, que exige proteção rigorosa para evitar exploração ou abuso.
Os artigos propostos, em primeiro lugar, ajudam a eliminar confusões conceituais existentes atualmente, orientando tanto julgadores quanto jurisdicionados em relação aos seus “novos direitos” existentes na era digital. Mais ainda, suas previsões significam um importante passo em direção ao reforço da proteção dos direitos de personalidade no ambiente digital, com delimitações essenciais para a garantia da igualmente fundamental proteção das liberdades de informação.
[1] Para a parte que nos importa, “Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Proteção da personalidade no ambiente digital: uma análise à luz do caso do assim chamado direito ao esquecimento no Brasil, Joaçaba, v. 19, n. 2, 2018.
[3] LIVI, Alessandra. Quale diritto all’oblio? Napoli: Jovene Editore, 2020.
[4] “Enduring ephemeral” no original. CHUN, Wendy. Updating to Rem a in the Same: Habitual New Media, Cambridge: The MIT Press, 2016.
[5] FARINHO, Domingos; LANCEIRO, Rui. Liberdade de expressão na internet. In: ALBUQUERQUE, Paulo Pinto (Org.), Comentário à Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Lisboa: Universidade Católica Editora, v. II, 2019.
[6] DIESTERHÖFT, Martin. Das Recht auf medialen Neubeginn: Die Unfähigkeit des Internets zu vergessen als Herausforderung für das allgemeine Persönlichkeitsrecht. Freiburg: Duncker & Humblot, 2014.
[7] TEDH, Hurbain v. Belgium, nº 57292/16, 04.07.2023, §192.
[8] FLORIDI, Luciano. ‘The Right to be Forgotten’: A Philosophical View, 2015.
Ricardo Campos é docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität, especialista em regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório, ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022), membro da Comissão de Juristas de Reforma do Código Civil brasileiro, coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional, diretor do Legal Grounds Institute. sócio do Warde Advogados, consultor jurídico e parecerista.
Carolina Xavier Santos é mestranda em Direito pela Universidade de Lisboa, graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisadora no Legal Grounds Institute e advogada.
Samuel Rodrigues de Oliveira é doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisador do Instituto Legal Grounds e advogado.