Direito e tempo: reflexões sobre a economia da atenção

Por Bernardo de Souza Dantas Fico e Bruno Blum Fonseca

Publicado originalmente no Conjur

No mundo digitalizado, a tecnologia nos permitiu fazer mais em menos tempo. A informação hoje transita mais rápido e, por isso, vivemos um boom de produtividade. No século 21, espera-se produzir mais em 24 horas do que em qualquer outro período da história. Apesar disso, não importa o quanto avancem as tecnologias e a força produtiva do homem: o dia continuará tendo as mesmas 24 horas.

Ao longo do dia, diversos fatores dificultam cumprirmos com nossos objetivos: atividades duram mais que o esperado, estímulos nos distraem, ou simplesmente havíamos determinado objetivos demais para o tempo disponível. Se somos capazes de produzir mais em menos tempo, também é verdade que o tempo “perdido” passa a ser um problema maior. Assim, a forma como alocamos nosso tempo é um fator cada vez mais relevante.

Atualmente, a quantidade e a força dos estímulos capazes de nos distrair nunca foi tão grande. Isso faz com que seja cada vez mais urgente e necessário pensar em mecanismos jurídicos para proteger o tempo de cada indivíduo.

O tempo como bem jurídico protegido
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, garante a todos o direito fundamental à vida. Desse direito à vida decorre uma gama de direitos, como o direito à saúde, segurança, e integridade física. Além desses, considerados “clássicos”, o direito à vida certamente também abarca um direito à proteção do tempo. Afinal, a vida nada mais é que a soma do tempo disponível para se viver, sendo o tempo uma medida que a compõe.

Além disso, o tempo é tutelado como um bem jurídico desde muito antes das noções modernas de produção surgirem, já tendo sido objeto de diversas disputas, talvez a mais notória delas no campo do trabalho. A contenda entre o tempo do trabalhador e o interesse do empregador por produtividade deu ensejo a formas de proteção do tempo pelo direito do trabalho (limite da jornada de trabalho, intervalos, férias etc.). Recentemente, Bélgica, Islândia e Escócia aprovaram medidas que reduzem as jornadas semanais de trabalho frente ao boom de produtividade proporcionado pelas novas tecnologias, em benefício da qualidade de vida [1].

Contudo, as dinâmicas do século 21 certamente ensejam a necessidade de um novo olhar do Direito para o tempo, pois a chamada Economia da Atenção provoca uma nova visão sobre esse bem jurídico.

Economia da Atenção
A finitude do tempo o faz valioso não só para nós enquanto indivíduos, mas também para as empresas. O conceito de “Economia da Atenção”, de Tim Wu [2], captura justamente a relevância econômica do tempo e como nossa atenção pode ser monetizada. Em diferentes setores as empresas competem pela atenção de seus consumidores. Particularmente, em modelos de negócio baseados em anúncios, o tempo que cada indivíduo passa atento às propagandas afeta diretamente o retorno financeiro das empresas.

Redes sociais são um exemplo de “Economia da Atenção”. O tempo que um usuário passa na plataforma se converte em maior número de interações, o que implica em conhecimento maior do seu perfil de consumo e um maior impacto dos anúncios direcionados. Esse impacto, por sua vez, é o que gera retornos financeiros à plataforma. A dinamicidade deste modelo, que se adapta individualmente a cada usuário, é executada por meio de algoritmos de inteligência artificial alimentados por Big Data que se ajustam aos gostos e às preferências de cada um. Assim, é possível que a rede social entregue progressivamente anúncios e recomendações mais precisos e de conteúdo supostamente mais interessante para o usuário.

Esse movimento de perfilar usuários objetiva maximizar a interação deles com a plataforma, o que se materializa, por exemplo, na arquitetura de feed adotada pela maioria das plataformas digitais. Numa inciativa recente, buscando garantir maior atenção dos usuários, a startup MoviePass passou a usar câmeras de celular para verificar se os expectadores estavam assistindo aos anúncios, pausando em caso de “desatenção”. Essa proposta se assemelha à distopia retratada em 15 Million Merits, na qual desviar os olhos de uma propaganda implica disparos sonoros altamente incômodos.

Novas ferramentas para proteger o tempo
Frente a esse cenário, algumas teorias e iniciativas têm surgido no direito do consumidor, com o intuito de proteger o tempo contra práticas abusivas ou indevidas dos fornecedores. Marcos Dessaune é o autor de uma das mais proeminentes teorias, a do desvio produtivo, segundo a qual o tempo do consumidor é um bem valioso, utilizado para as mais diversas atividades. Assim, seria ilícito e, portanto, indenizável, eventual desvio deste bem produtivo pelas empresas fornecedoras de produtos e serviços.

Se antes a maioria da doutrina enxergava nos “danos” ao tempo um “mero dissabor” do consumidor (sem configurar dano moral), hoje a teoria do desvio produtivo é acolhida em diversas decisões [3]. O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu o dano decorrente de tempo indevidamente perdido para substituição de produto defeituoso (REsp 1.634.851), no atendimento precário (excessivamente demorado) de agências bancárias (REsp 1.737.412) e em esperas desproporcionalmente longas no caixa eletrônico (REsp 1.929.288). A tendência parece enquadrar esse tipo de dano como uma espécie de dano extrapatrimonial.

No final de 2022, foi apresentado no Senado o Projeto de Lei nº 2.856, voltado a alterar o Código de Defesa do Consumidor para “dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor”. A iniciativa deve ir a debate nas comissões e casas do Congresso Nacional, onde entendemos que deve passar por aperfeiçoamentos, principalmente no tocante a uma definição mais concreta das hipóteses de ocorrência do desvio produtivo.

Nesse sentido, outra questão conhecida dos brasileiros envolve as ligações automáticas ou feitas por robôs. Isso porque, para otimizar o número de chamadas atendidas, empresas de telemarketing usam aparelhos automáticos que ligam para dezenas de telefones ao mesmo tempo. O primeiro que atender é direcionado para um vendedor humano, enquanto os demais têm a chamada encerrada. Com isso, muitos brasileiros queixam-se de receber ligações excessivas, sendo que boa parte delas sequer é concluída.

A Anatel tem apresentado esforços contra as chamadas abusivas, principalmente mediante a edição de duas medidas cautelares sucessivas, o Despacho Decisório nº 160/2022/Coge/SCO, de junho de 2022, e o Despacho Decisório nº 250/2022/Coge/SCO, de outubro de 2022, que têm como objetivo reduzir o volume de ligações diárias feitas por meios automatizados, impondo limite máximo diário e uma multa de até 50 milhões de reais em caso de descumprimento. Conforme a agência, as medidas implicaram uma redução de 40% nas chamadas via robô [4]. Apesar disso, no mês de janeiro, essas ligações ainda representavam mais de 50% de todas as chamadas do país [5].

Conclusão
Essas iniciativas demonstram o que parece ser uma tendência legislativa e regulatória para se buscar meios de proteger o tempo do consumidor.

Muito além do que mais uma forma de se obter indenização, a tutela do tempo se mostra necessária dentro do novo paradigma da Economia da Atenção. Por isso, essas iniciativas devem explorar práticas potencialmente prejudiciais ao tempo do consumidor, como o envio insistente de e-mails e notificações (spam), bem como procedimentos indevidamente demorados de contato com determinada empresa, de modo a desincentivar o gozo pelo consumidor de seus próprios direitos.

Assim, deve o esforço protetivo cuidar também dos inúmeros meios que a Economia da Atenção tem desenvolvido para atrair, reter e controlar a atenção (e o tempo) dos consumidores-usuários, protegendo, assim, em última análise, a autonomia de cada um para decidir como deseja empregar as 24 horas diárias que dispõe.

[1] https://www.istoedinheiro.com.br/onde-o-sonho-da-semana-de-4-dias-de-trabalho-ja-e-realidade/.

[2] Ver: WU, Tim. Attention brokers. Disponível em: https://www.law.nyu.edu/sites/default/files/upload_documents/Tim%20Wu%20-%20Attention%20Brokers.pdf; e WU, Tim. Blind Spot: The Attention Economy and the Law, 82 ANTITRUST L. J. 771 (2019). Disponível em: https://scholarship.law.columbia.edu/faculty_scholarship/2029

[3] DESSAUNE, Marcos. A ampliação do conceito de dano moral e a superação da tese do ‘mero aborrecimento’. Consultor Jurídico: 10 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-10/garantias-consumo-ampliacao-conceito-dano-moral-superacao-tese-mero-aborrecimento.

[4] https://www.metropoles.com/brasil/ligacoes-de-telemarketing-com-robos-tiveram-reducao-de-40-diz-anatel

[5] https://tecnoblog.net/noticias/2023/02/01/mesmo-com-reducao-robocalls-ainda-representam-metade-das-ligacoes-no-brasil/

Sobre o autor
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Bernardo Fico

Gestor Institucional do Legal Grounds Institute. Mestre em Direito Internacional pela Northwestern Pritzker School of Law, Pós-Graduado em Direito Digital pela UERJ e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Possui cursos de concentração em Direitos Humanos (Stanford 2016), Direito Internacional (OEA-RJ, 2017), Human Rights Advocacy (Lucerne 2017), e Media Law (Oxford, 2018) além de Diploma Superior en Diversidad Sexual y Derechos Humanos (CLACSO, 2018).
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Bernardo Fico

Gestor Institucional do Legal Grounds Institute. Mestre em Direito Internacional pela Northwestern Pritzker School of Law, Pós-Graduado em Direito Digital pela UERJ e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Possui cursos de concentração em Direitos Humanos (Stanford 2016), Direito Internacional (OEA-RJ, 2017), Human Rights Advocacy (Lucerne 2017), e Media Law (Oxford, 2018) além de Diploma Superior en Diversidad Sexual y Derechos Humanos (CLACSO, 2018).

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