Fair share no setor da telecomunicação: o que está em jogo?

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Por Ricardo Campos, diretor do Legal Grounds Institute.

Publicado originalmente no Jota em 18/05/2023 00:10

No final de fevereiro, a Comissão Europeia abriu uma consulta pública sobre a iniciativa do fair share, nome dado às propostas que pretendem repassar às grandes empresas de tecnologia parte dos custos de atualização e manutenção da infraestrutura que viabiliza o fluxo de dados por elas gerado.

O objetivo é incluir diversos atores nessa complexa discussão, que se insere em um contexto de necessidade de amplos investimentos em conectividade, a fim de viabilizar os objetivos afirmados no Path to the Digital Decade[1], programa adotado pelo Conselho para tornar a Europa um líder tecnológico ate 2030, englobando, como um dos focos, infraestruturas digitais seguras e sustentáveis. No entanto, de acordo com as operadoras europeias, para se alcançar os objetivos traçados é necessário que sejam adotadas políticas para garantir um ecossistema digital mais equilibrado, no qual todos contribuam de forma justa e proporcional.

Isso porque o cenário atual estaria se tornando insustentável[2]. É inegável a relação simbiótica entre acesso e conteúdo, de modo que a operadora precisa que o usuário queira consumir conteúdo para que possa comprar o acesso à rede, da mesma forma em que a empresa de conteúdo precisa utilizar da infraestrutura mantida pelas operadoras para conseguir entregar conteúdo aos usuários finais. Ocorre que é exatamente essa complementariedade que permite visualizar a situação de desequilíbrio em que ambos os setores se encontram.

No contexto da União Europeia, por exemplo, os custos totais de rede relacionados ao tráfego estão entre € 36 bilhões e € 40 bilhões por ano[3]. Mais da metade deste tráfego, por sua vez, é gerado pelas gigantes da tecnologia: Meta, Alphabet, Apple, Amazon, Netflix e Microsoft[4]. Por outro lado, por mais expressivos que sejam os investimentos para expansão e melhoria das infraestruturas de acesso, o crescimento do tráfego de dados é muito mais acelerado, o que pode colocar em risco a sustentabilidade da infra necessária, e, consequentemente, a acessibilidade digital da população conquistada ao longo dos últimos anos.

Esse cenário, que não se restringe ao contexto europeu, não vê sinais de melhora. A revolução tecnológica permite, cada vez mais, a transferência de serviços e hábitos para o ambiente digital, em prol do bem-estar social. O crescente aumento de tráfego de dados global[5], que já vem sendo observado desde pelo menos 2017, demanda das empresas de telecom constantes esforços de incremento das redes, com vultuosos investimentos em infraestrutura. Além disso, a nova geração de tecnologias, incluindo (mas não só) cloud computing, inteligência artificial e o metaverso – que avançam em velocidades exponenciais –, também tem requerido maciços aportes em infraestruturas que a acomodem e integrem em todo seu potencial.

O quadro afeta não apenas o setor de telecomunicações, mas toda a sociedade, considerando a essencialidade que caracteriza a infraestrutura de rede hoje e o papel dessas empresas na facilitação da conectividade de todo um ecossistema, com a velocidade e qualidade necessárias. Diante disso, é fundamental se pensar em um arranjo institucional que envolva a contribuição de todos aqueles que por eles são beneficiados, a fim de que o desenvolvimento tecnológico alcance todo seu potencial, não apenas na inovação, mas, principalmente, na inclusão digital.

Propostas de fair share, nesse sentido, ao incluir as grandes empresas de tecnologia no custeio da infraestrutura, possibilitariam maior investimento em redes de alta capacidade, direta ou indiretamente, constituindo um tecido para fornecer novos e melhores serviços aos usuários finais e permitindo o desenvolvimento de inovações como inteligência artificial, Internet of Things, automação industrial etc., impactando diversos setores – indústria 4.0, saúde e educação, para citar alguns – e abrindo novas possibilidades para o design de modelos de negócios. Uma maior fonte de custeio também poderia impactar a inclusão digital ao permitir maiores investimentos em áreas tradicionalmente menos conectadas, como áreas rurais e menos desenvolvidas.

O ponto é que o atual estado de desequilíbrio também se verifica quanto ao assimétrico poder de barganha entre os setores, estando as operadoras incapazes de negociar termos de forma justa com as big techs que, por outro lado, detêm forte posição de mercado e estão sujeitas – por ora – a pouca ou nenhuma regulamentação. A despeito das relações comerciais já existentes entre os dois setores, as propostas de fair share buscam justamente superar as dificuldades que tais relações têm apresentado, substituindo custos negociados privatisticamente por tarifas regulamentadas que levem em consideração aspectos como o interesse público e a acessibilidade digital, em nítido benefício de toda a sociedade.

[1] Cf. https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/europes-digital-decade-digital-targets-2030_en

[2] Cf. https://www.telefonica.com/en/communication-room/blog/a-call-for-large-content-platforms-to-contribute-to-the-cost-of-the-european-digital-infrastructure-that-carries-their-services/

[3] Cf. https://www.telefonica.com/es/wp-content/uploads/sites/4/2022/05/2022-03-30-Frontier_Fair-Share_FINAL-REPORT.pdf

[4] Cf. https://www.etno.eu/library/reports/105-EU-internet-ecosystem.html

[5] Cf. https://www.statista.com/statistics/271405/global-mobile-data-traffic-forecast/

Sobre o autor
Ricardo Campos

Ricardo Campos

Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Consultor jurídico e parecerista
Ricardo Campos

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Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Consultor jurídico e parecerista

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