Hora de pensar em uma proteção constitucional ao pensamento?

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Por Bruno Farage e Mariana Ruzzi

Publicado originalmente no JOTA.

liberdade de expressão
Crédito: Unsplash

Em 2010, Christopher Nolan apresentou aos cinemas uma obra de ficção científica intitulada Inception (A origem, na versão em português). Estrelando atores como Leonardo DiCaprio e Tom Hardy, é um filme, no mínimo, instigante. Ambientado em um futuro próximo ao nosso, no qual a tecnologia permite a invasão de sonhos, a trama acompanha um habilidoso espião que recebe sua última chance de redenção. Para tanto, ele precisa cumprir uma missão aparentemente impossível: plantar uma ideia inusitada na mente de alguém, influenciando essa pessoa a realizar algo contra sua vontade.

Inception foi desenvolvido fundamentando-se na ideia de “explorar o conceito de pessoas compartilhando um espaço de sonhos”. Isso permitiria acessar o inconsciente de alguém, provocando a manipulação dos pensamentos e sonhos e desafiando os limites entre realidade e ilusão.

Embora pesquisadores venham estudando os sonhos há muito tempo, a partir de técnicas como a eletroencefalografia (EEG) para monitorar a atividade cerebral durante o sono, a tecnologia fictícia de Inception, que permite a inserção de indivíduos em um sonho compartilhado, é um passo além do que a neurociência atual pode alcançar.

A evolução da tecnologia, especialmente das neurotecnologias emergentes, tem superado barreiras antes vistas como inultrapassáveis, progredindo em conjugações relevantes entre neurociência e inteligência artificial.

A neurociência sempre buscou analisar o funcionamento cerebral, sendo possível atualmente efetuar estudos entre as dimensões racionais e emocionais do ser humano que influenciam diretamente no comportamento do indivíduo (Kandel et al, 2014). Paradoxalmente, o desafio de desenvolvedores e estudiosas na área de sistemas é desenvolver programas utilizando inteligência artificial aptos a realizar atividades equivalentes às funções cognitivas do cérebro, que até então só eram possíveis de ser desempenhadas efetivamente por seres humanos.

As neurotecnologias, especialmente as conhecidas como interface cérebro-computador, já são capazes de transformar impulsos neurais em linguagem computacional, sendo possível, por meio delas, realizar modificações nas interações entre o corpo humano e o cérebro, incluindo técnicas  de estimulação cerebral que podem ser utilizadas como tratamento de doenças neurológicas como Alzheimer.

Embora seja inegável o potencial das neurotecnologias para beneficiar indivíduos, especialmente na área da saúde, transformando a sociedade e viabilizando uma melhor qualidade de vida para pessoas que foram acometidas por doenças no cérebro antes entendidas como “incuráveis”, esse avanço deve ser analisado por uma perspectiva crítica.

Ainda que existam aspectos positivos, as neurotecnologias podem interferir na autonomia da vontade, princípio instituído constitucionalmente (art. 5º, II), no qual há a garantia de que os indivíduos tenham a liberdade para tomar certas decisões. Em linhas gerais, “o princípio da autonomia da vontade significa o poder que os sujeitos têm de estabelecer as normas que vão reger seus próprios comportamentos” (Lourenço, 2001, p. 16-17).

Portanto, diante das significativas transformações na sociedade, resultantes de sua complexidade e diversidade, emergem questões sobre as bases teóricas do constitucionalismo e a obrigação de proteger os direitos fundamentais no ambiente digital. Isso conduz a uma nova perspectiva para o direito constitucional no âmbito do constitucionalismo contemporâneo: o constitucionalismo digital.

O constitucionalismo digital, segundo Edoardo Celeste (2019), representa “uma declinação do constitucionalismo contemporâneo, com suas ferramentas clássicas, tratando de uma nova abordagem para acoplar as contrações (ou respostas) constitucionais contra os desafios trazidos pela tecnologia digital”.

Conforme mencionado, um exemplo claro da necessidade de debater esse novo paradigma é observado no impacto direto sobre direitos fundamentais essenciais, como a liberdade de ação e a autonomia da vontade.

O conceito de “filtro bolha”, criado para descrever como os algoritmos personalizam o conteúdo online com base nas atividades do usuário (Pariser, 2012), assim como o Big Nudging, um termo que define a fusão entre técnicas de nudging[1] (arquitetura de escolha) e as capacidades da big data para moldar políticas governamentais e manipulação ideológica[2], são intervenções que comprometem significativamente a autonomia individual. Esta última representa um direito fundamental da primeira dimensão, que valoriza a ausência de interferências externas, especialmente por parte do Estado[3].

Vale destacar, também, a incipiente discussão acerca dos “neurodireitos” e como esses afetam a discussão atual relacionada à proteção constitucional da liberdade de expressão. Durante muito tempo, a doutrina constitucionalista defendeu que a Constituição, ao proteger a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), restringe-se à externalização do pensamento e não ao pensamento em si. Conforme lição de José Afonso da Silva:

“liberdade de pensamento em si mesmo, enquanto o homem não manifesta exteriormente, enquanto o não comunica, está fora de todo poder social, até então é do domínio somente do próprio homem, de sua inteligência e de Deus. O homem, porém, não vive concentrado só em seu espírito, não vive isolado, por isso mesmo que por sua natureza é um ente social. Ele tem a viva tendência e necessidade de expressar e trocar suas ideias e opiniões com os outros homens, de cultivar mútuas relações, seria mesmo impossível vedar, porque fora para isso necessário dissolver e proibir a sociedade” (Silva, 1997, p. 234).

A liberdade de expressão sempre foi discutida por muitos vieses e perspectivas, sofrendo até mesmo mutações em relação ao âmbito de proteção e diretrizes[4]. Contudo, essa cisão entre pensamento em si e a exteriorização do pensamento pode estar prestes a se tornar – se é que já não se tornou – obsoleta.

As atuais ferramentas neurotecnológicas possibilitam a interação com o cérebro humano através de dispositivos capazes de medir ou modificar a atividade cerebral. Esses dispositivos, que podem ser eletrônicos, ópticos, acústicos, magnéticos ou baseados em nanotecnologia, estão sendo amplamente empregados tanto em pesquisas clínicas quanto em tratamentos médicos e de saúde.

Independentemente de quem o opera ou do propósito de seu uso, o operador de um dispositivo neurotecnológico obtém acesso a dados neurais extremamente pessoais do paciente. Esses dados podem incluir memórias, emoções, processos de tomada de decisão, fatores que influenciam o comportamento e até mesmo os pensamentos, motivo pelo qual adicionalmente se defende a liberdade cognitiva, sendo essa entendida como o “direito de alterar os estados mentais com a ajuda de neurotecnologias, como de se recusar a fazê-lo” (Bublitz, 2013, p. 234). Segundo Ienca e Adorno (2017) a liberdade cognitiva, intrinsecamente ligada à liberdade de pensamento, é necessária para garantia e efetivação de todas as outras liberdades.

Por esse motivo, tem crescido o movimento em relação à proteção dos direitos fundamentais ligados aos denominados Neurodireitos, impactados pelas neurotecnologias. Por exemplo, em 2017, Rafael Yuste publicou um artigo significativo na renomada revista Nature. O texto ressalta as preocupações crescentes sobre como o avanço tecnológico poderia, inevitavelmente, levar à decodificação dos processos mentais das pessoas e à manipulação direta dos mecanismos cerebrais que fundamentam suas intenções, emoções e decisões (Yuste, 2017).

Parece-nos razoável, portanto, afirmar que chegou a hora de refletir acerca de uma proteção constitucional ao pensamento, devendo este ser entendido como característica indissociável e fonte da liberdade de expressão, o que implica em uma litigância pela defesa dos neurodireitos.

A ficção do filme Inception nos faz refletir sobre uma realidade não tão distante em que seja possível, através de neurotecnologias, acessar o inconsciente e manipular pensamentos e sonhos, podendo tal tecnologia ser usada de forma temerária, por exemplo, para fins políticos e bélicos. Falar em proteção constitucional ao pensamento, portanto, é necessário e urgente para a sistemática constitucional de proteção dos direitos mais básicos.


BUBLITZ, J. C. My Mind is Mine!? Cognitive Liberty as a Legal Concept. In: Hildt E, Franke AG, eds. Cognitive Enhancement. An Interdisciplinary Perspective. Dordrecht: Springer; 2013. p. 233–64.

CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation.International Review of Law, Computers and Technology, v. 33, n. 1, p. 76–99, 2019.

CLARAMUNT, Jorge Castellanos. La democracia algorítmica: inteligencia artificial, democracia y participación política. Revista General de Derecho Administrativo, València, n. 50, p. 1-32, jan. 2019.

IENCA, Marcelo; ADORNO, Roberto. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences Society and Policy, v. 14, set. 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s40504-017-0050-1. Acesso em: 27 out. 2023.

KANDEL, Eric R. et al. Neuroscience thinks big (and collaboratively). Nat Rev Neurosci v. 14, p. 659–664 (2013). Disponível em: https://doi.org/10.1038/nrn3578. Acesso em: 25 out. 2023.

LEITE, Fábio Carvalho. Liberdade de Expressão e Direito à honra: novas diretrizes para um velho problema. In: Clèmerson Merlin Clève; Alexandre Freire. (Org.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional: análise, crítica e contribuições. 1ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v., p. 395-408.

LOURENÇO, José. Limites à liberdade de contratar: princípios da autonomia e da heteronomia da vontade nos negócios jurídicos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001.

PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. 252 p.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. Livraria do Advogado, 2018.

SUNSTEIN, Cass R; THALER, Richard H. Nudge. O Empurrão Para A Escolha Certa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 280 p.

YUSTE, R., Goering, S., Arcas, B. et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and al. Nature 551, 159–163 (2017). Disponível em: https://doi.org/10.1038/551159a

[1] O Nudge é definido por Thaler e Sunstein (2008) como “qualquer aspecto da arquitetura de escolhas que altera o comportamento das pessoas de maneira previsível sem proibir nenhuma opção nem mudar significativamente seus incentivos econômicos. Para ser considerada uma mera cutucada ou orientação, uma intervenção deve ser fácil e barata de evitar. As cutucadas não são ordens”.

[2] Utiliza-se essa expressão frente à combinação massiva de dados dos cidadãos e ao procedimento sutil que é realizado, com base nessas informações, para a manipulação de seus comportamentos (Claramunt, 2019).

[3] Conforme Sarlet (2018) Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar, do pensamento liberal-burguês do século XVIII de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder.

[4] Há alguns anos, por exemplo, Fábio Leite (2014) indicou quatro breves diretrizes para uma reflexão sobre a necessidade de uma alteração na forma como os conflitos ligados à liberdade de expressão têm sido resolvidos pelo Poder Judiciário no Brasil.

BRUNO FARAGE DA COSTA FELIPE – Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio), mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ). Professor, advogado e pesquisador em direito e novas tecnologias
MARIANA RUZZI – Mestranda em Direito pela Unesp, graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca e em Serviço Social pela Unesp

Sobre o autor
Legal Grounds Institute

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Produzindo estudos sobre políticas públicas para a comunicação social, novas mídias, tecnologias digitais da informação e proteção de dados pessoais, buscando ajudar na construção de uma esfera pública orientada pelos valores da democracia, da liberdade individual, dos direitos humanos e da autodeterminação informacional, em ambiente de mercado pautado pela liberdade de iniciativa e pela inovação.
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