Por Ana Laura Marinho, Ani Karini Muniz Schiebert e Jose Humberto Fazano Filho
O câncer representa um desafio para a saúde pública global. Apenas nos Estados Unidos da América, espera-se que mais de 1.9 milhões de pessoas sejam diagnosticadas com a doença em 2023 . No Brasil, o cenário não é diferente, pois o Instituto Nacional do Câncer prevê cerca de 704 mil casos anuais no período entre 2023 e 2025 , conforme dados publicados na Estimativa 2023 – Incidência de Câncer no Brasil. Essa previsão tem motivado a elaboração de estratégias públicas e privadas para combater e prevenir a doença, por exemplo, a criação de cursos de pós-graduação na área de oncologia ou a aplicação de ferramentas de Inteligência Artificial (IA) de maneira transversal no setor da saúde.
A IA está sendo aprimorada e se desenvolvendo progressivamente na execução de algumas das atividades características dos humanos, contudo com maior eficiência, velocidade e custo reduzido. O potencial para a aplicabilidade tanto da Inteligência Artificial quanto da robótica no setor de saúde é grande e tem sido largamente explorado por empresas de tecnologia. Algumas iniciativas são referências em suas respectivas áreas. O Watson for Health, da IBM, ajuda instituições de saúde a processar e armazenar uma grande quantidade de informações médicas, abrangendo, por exemplo, artigos científicos e dados clínicos, de forma muito mais veloz que qualquer ser humano, potencializando diagnósticos e tratamentos. O Google’s DeepMind Health colabora com médicos, pesquisadores e pacientes na resolução de desafios concretos no setor da saúde. Esta ferramenta emprega aprendizado de máquina e neurociência para desenvolver algoritmos amplos e robustos, estruturados em redes neurais que replicam o funcionamento do cérebro humano . Há iniciativas, entretanto, que têm causado controvérsia por alegadamente conduzir testes em animais com crueldade, como a Neuralink, de Elon Musk, que recebeu aprovação da Federal Drug Administration (FDA) nos EUA para conduzir testes clínicos em humanos .
Recentemente, teve destaque na mídia especializada o caso da startup EZRA AI, Inc., dedicada ao desenvolvimento de ferramentas para a realização de exames médicos, que acaba de receber a liberação (clearence) 510(k) da FDA, agência federal reguladora nos Estados Unidos, para a comercialização de sua tecnologia de inteligência artificial, a EZRA Flash, que promete revolucionar o diagnóstico precoce de câncer.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que a detecção precoce do câncer é essencial e tem como objetivo identificar a doença no seu estágio inicial, permitindo a implementação de um tratamento efetivo. Ao possibilitar assistência e cuidados apropriados na fase inicial da doença, o diagnóstico precoce aperfeiçoa os prognósticos de câncer, constituindo-se, assim, em uma estratégia crucial de saúde pública. Desse modo, são inúmeras as iniciativas públicas e privadas voltadas a detecção precoce do câncer.
A EZRA AI, Inc. é reconhecida por disponibilizar técnicas inovadoras e é pioneira na utilização de inteligência artificial para processamento de imagens, análise e elaboração de laudos médicos, componentes importantes no processo de detecção da doença. Tomamos a empresa como exemplo, pois emblemática na dinâmica do avanço do desenvolvimento tecnológico e das aplicações comerciais atuais.
A empresa criou o Full Body Flash, um protocolo de ressonância magnética (MRI) de corpo inteiro relativamente barato. No entanto, ao tentar reduzir o tempo para a realização do exame, o que tem o potencial de tornar o processo ainda mais acessível, acabou por produzir imagens com ‘ruído’, ou seja, com qualidade abaixo do necessário para a detecção eficaz de câncer e outras doenças. A nova ferramenta que recebeu a aprovação da FDA, o Ezra Flash AI promete melhorar as imagens geradas pela MRI, diminuindo o tempo necessário para a realização do exame, que passa a ser de 30 minutos, um recorde de acordo com a empresa e a mídia especializada. Para além do tempo despendido no exame, a empresa, que já oferece seus serviços em cidades como Miami e Nova York, reduziu os custos para o Full Body Flash em 30%. Com a aplicação da nova ferramenta de inteligência artificial, é possível detectar câncer e mais de 500 outras condições, dentre elas aneurismas e hérnias, em até 13 órgãos.
Com a finalidade de comercializar o Ezra Flash AI, a empresa obteve uma aprovação 510(k) concedida pela FDA . Essa via de aprovação é específica para dispositivos médicos e permite que fabricantes comercializem produtos considerados “substancialmente equivalentes” a dispositivos já aprovados (predicate devices) pela agência reguladora. O termo “510(k)” refere-se à seção correspondente na Lei Federal de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos (Federal Food, Drug and Cosmetic Act), que estabelece os requisitos para essa via de aprovação.
Resumidamente, o processo de avaliação e aprovação 510(k) tem como objetivo principal permitir o acesso mais rápido ao mercado para dispositivos médicos previamente aprovados pela FDA, evitando a necessidade de realizar novos estudos clínicos para cada dispositivo similar que entra no mercado. O processo acelera a disponibilidade de tecnologias inovadoras e permite que os pacientes se beneficiem dessas inovações mais rapidamente, tendo em vista que o processo demora em média de 30 a 90 dias.
Para ser considerado “substancialmente equivalente”, o dispositivo submetido para a aprovação 510(k) deve ter as mesmas finalidades médicas e atingir resultados comparáveis aos dispositivos de referência já aprovados. Em teoria, o dispositivo deve ser tão seguro e eficaz quanto aqueles que já estão no mercado. Entretanto, há críticas ao processo de aprovação para o 510(k), pois elimina a necessidade de testes clínicos e tem pouca fiscalização da agência reguladora. Em contrapartida, o direito regulatório norte-americano oferece outra via de acesso para dispositivos cujo risco é potencialmente maior, o Premarket Approval (PMA) que requer estudos clínicos e laboratoriais e um processo detalhado para determinar a segurança e a eficácia de um determinado dispositivo.
Com efeito, esta nova tecnologia abre margem para discussões de extrema relevância a respeito da segurança e eficiência dos sistemas de saúde, dentre elas se destaca o debate acerca dos desafios técnicos e regulatórios na aplicação da IA na saúde. Isso porque, as ferramentas de IA já estão sendo utilizadas e a tendência é que sejam cada vez mais implementadas transversalmente no setor da saúde, não restando dúvidas acerca dos inúmeros benefícios sociais e tecnológicos que trarão à sociedade, sobretudo com relação a sua capacidade de tornar os sistemas de saúde mais ágeis e eficazes. Entretanto, para que seu principal objetivo não seja desvirtuado é imprescindível que o surgimento destas novas tecnologias ocorra concomitantemente com o desenvolvimento de um ambiente regulatório claro e coerente.
A esse respeito, cumpre apontar estudo realizado por Flood e Régis (2021) em que os autores desenvolvem apontamentos a respeito dos riscos da adoção de IA na saúde, os quais, por consequência, geram a necessidade de se fortalecer a regulação estatal sobre o tema, com a ressalva de que, embora o referido estudo se debruce sobre a realidade do Canadá, também pode ser deslocado para o contexto brasileiro.
Com efeito, três foram os principais riscos e desafios encontrados pelos autores na utilização de IA na saúde a justificar uma regulação. Primeiramente, eles destacam o risco de, caso utilizadas sem observância às boas práticas, as novas tecnologias possam prejudicar a saúde dos pacientes, na hipótese de uma IA prescrever um tratamento e/ou medicamento errado. Em segundo lugar, chamam a atenção para os riscos envolvidos na possibilidade de o viés algorítmico das ferramentas de IA favorecerem aqueles indivíduos com recursos financeiros para acessar as novas tecnologias em detrimento daqueles que dependam exclusivamente do sistema público de saúde. E, por último, salientam que a permanente existência de pontos cegos na utilização de IA na saúde é uma realidade inerente à própria natureza da inovação, devendo, portanto, ser considerada quando da estruturação das capacidades estatais regulatórias no setor.
Nesse sentido, diante das inúmeras contribuições positivas trazidas pelo uso das tecnologias de IA na saúde, como é o caso do Ezra Flash AI, se torna cada vez mais evidente que a utilização de tais recursos no auxílio de diagnósticos mais rápidos e precisos de doenças não possui caráter transitório, devendo, portanto, ser objeto de análise cuidadosa no âmbito regulatório, a fim de que a implementação destas tecnologias ocorra de forma bem sucedida e em consonância com os princípios democráticos da sociedade brasileira.
Para além dos desafios regulatórios ora apresentados, vale também destacar que embora seja inconteste o potencial da IA em melhorar a prestação de serviços de saúde em todo o mundo, há também que se levar em consideração uma série de questões éticas e de privacidade que envolvem os direitos e garantias dos indivíduos quando se trata do uso dessas tecnologias na área da saúde.
A este respeito, a OMS (2021) elaborou o Relatório “Ética e Governança da Inteligência Artificial para a Saúde”, onde foram destacadas as principais preocupações éticas de privacidade envolvidas na utilização de IA no contexto da saúde.
Um primeiro ponto destacado foi a questão que envolve a proteção de dados sensíveis na área da saúde, haja vista que tais dados têm proteção especial tanto no Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), quanto na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD no Brasil (art.5º, II c/c art.11 LGPD) e necessitam, portanto, de um tratamento especial e mais segurança no armazenamento e transferência desses dados.
Além disso, também foi apontada a importância da explicabilidade e transparência algorítmica, sobretudo no setor da saúde, tendo em vista que os sistemas de inteligência artificial, na maioria dos casos, envolvem o uso de algoritmos de “machine learning” complexos, não havendo transparência quanto ao funcionamento de tais algoritmos aos usuários dos sistemas, sendo necessário que haja maior explicabilidade dos algoritmos que compõem a ferramenta de IA para que os diagnósticos e resultados de exames possam ser mais bem compreendidos, tanto pelos pacientes, quanto pelos médicos.
Outro ponto abordado no relatório diz respeito ao enviesamento algorítmico, considerando que os bancos de dados que alimentam os sistemas de IA são treinados com base em dados já existentes e de acordo com o Input dado por quem alimenta o referido banco, de forma que é imprescindível que os algoritmos utilizados na IA em saúde contemplem populações com os mais diversos perfis, a fim de evitar vieses nos resultados.
Estes e outros pontos foram assinalados no relatório como importantes dimensões bioéticas a serem observadas quando da utilização de IA no setor da saúde, podendo ser englobadas em quesitos como segurança, compromisso com a diminuição das iniquidades em saúde, benefício e segurança para o paciente, confidencialidade dos dados sensíveis e responsabilização em caso de cometimento de erros e/ou danos.
Em conclusão, percebe-se que o uso de tecnologias de IA pode e deve ser um aliado no processo de melhorias na prestação de serviços de saúde, como é o caso do Ezra Flash AI, que permitirá uma detecção mais rápida e precisa do câncer, além de reduzir gastos com pessoal e erros humanos, o que é benéfico, especialmente em áreas com acesso limitado à saúde ou recursos escassos como o Brasil, desde que respeitados os princípios éticos e legais que regulam o setor.