O fair share na Coreia do Sul: caso SK Broadband v. Netflix

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Por Ricardo Campos e Alexandre Freire

Publicado originalmente no Jota.

Em março deste ano, a Anatel publicou a Tomada de Subsídio nº 13, sobre a regulamentação de deveres dos usuários de serviços de telecomunicações e, em especial, sobre a necessidade de se estabelecer regras específicas para os grandes usuários, i.e., aqueles classificados como serviços de valor adicionado nos termos do artigo 61 da LGT[1].

Isso trouxe para o cenário nacional o debate sobre o chamado fair share, que visa incluir as grandes empresas de tecnologia no custeio da infraestrutura que viabiliza o fluxo de dados por elas gerado. Trata-se de garantir que todos aqueles que se beneficiam das redes contribuam de forma proporcional para sua manutenção e atualização, como forma de promover sua sustentabilidade e o reequilíbrio do ecossistema digital.

Tal debate, contudo, também vem sendo travado para além do Brasil, tanto na União Europeia, com a consulta pública sobre o futuro das telecomunicações lançada em fevereiro[2], quanto nos Estados Unidos, com o Funding Affortable Internet with Reliable Contributions Act[3] (FAIR Contributions Act).

Mas é o cenário da Coreia do Sul, potência globalmente reconhecida quando se trata de tecnologia da informação[4], que mais chama atenção, sobretudo em razão dos recentes desenvolvimentos acerca do pagamento de taxas de uso de rede, disputados na via judicial, com o caso SK Broadband v. Netflix. A disputa envolveu, de um lado, a gigante do streaming e, do outro, uma das maiores provedoras de acesso à internet do país e subsidiária da principal operadora de telefonia móvel (SK Telecom), inserindo-se em um contexto de sucessivas explosões de tráfego de dados no país – um salto de 24 vezes entre 2018 e 2021[5] –, especialmente devido à popularidade da série Squid Game (Round 6, no Brasil) e à pandemia da Covid-19.

O início da disputa remonta a, pelo menos, o final de 2018, quando a SK Broadband solicitou à Netflix o pagamento de taxas de uso da rede devido ao exponencial aumento do tráfego por ela gerado, o que teria demandado altos investimentos em expansão da capacidade da infraestrutura para manter a qualidade de alta definição. Após a recusa, a SKB apresentou, em novembro de 2019, um pedido à Comissão de Comunicações da Coreia (KCC) para que interviesse nas negociações.

Contudo, o processo foi suspenso pouco depois, em abril de 2020, quando a Netflix iniciou um litígio judicial contra a ISP, buscando um julgamento que declarasse não haver obrigação de negociar quaisquer pagamentos pelo uso da rede, já que o serviço oferecido pela SKB seria apenas de “entrega” (e não de “acesso”) e, portanto, deveria observar o princípio da neutralidade de rede, o que impediria quaisquer cobranças para sua realização. De outro lado, a SKB defendeu que o serviço por ela oferecido consistia em uma rede dedicada exclusivamente ao tráfego da Netflix, que deveria, por isso, suportar parte dos custos até então unicamente suportado pelos assinantes, sob pena de lucrar injustamente ao utilizar, de forma gratuita, serviços de alto valor econômico[6].

Na primeira fase do litígio, o Tribunal Distrital Central de Seul arquivou o caso, reconhecendo, em decisão de 25 de junho de 2021, que cabia à SKB algum tipo de compensação pelos serviços prestados à Netflix, devendo o montante ser definido via negociações diretas entre as empresas. Em seguida, a Netflix recorreu da decisão ao Supremo Tribunal de Seul, que se propôs, durante uma das diversas audiências realizadas – em desfavor da Netflix – a discutir[7] um método de definição das taxas de uso da rede que levasse em consideração os custos totais da infraestrutura e a medida de tráfego do respectivo provedor de conteúdo[8]. Isso porque, de acordo com o governo sul-coreano, a Netflix consome 7,2% da capacidade total de rede do país[9].

Após três anos de intensas discussões, as empresas anunciaram, em setembro de 2023, uma parceria estratégica[10] que pôs fim ao litígio sobre recuperação de custos. De acordo com breve nota publicada, a parceria tem como objetivo fornecer aos usuários experiencias melhores e mais convenientes através de produtos combinados. Sem mais detalhes sobre o acordo, presume-se que, no futuro, usuários poderão adquirir os serviços da Netflix por meio da sua assinatura de banda larga, em uma espécie de cross-selling, como forma de garantir que os custos reclamados pela SKB sejam cobertos. De todo modo, a parceria não encerra a discussão mais ampla sobre justa contribuição, que não se limita a essas empresas em específico e nem mesmo a unicamente empresas de streaming, mas envolve também outras grandes plataformas e motores de busca.

Para além da importância geral do caso, alguns aspectos devem ser especialmente destacados. Em primeiro lugar, para o Tribunal sul-coreano, de forma semelhante ao mercado de cartões de crédito, as provedoras de acesso à internet funcionam em uma estrutura bilateral, composta pelos usuários de um lado e pelas provedoras de conteúdo do outro, e podem se envolver em transações business-to-business[11].

Tal reconhecimento constitui uma resposta a argumentos de que o fair share constituiria uma cobrança dupla, considerando que os ISPs já recebem taxas fixas dos usuários finais. Na verdade, as demandas para que as big techs contribuam visam reequilibrar o quadro atual, permitindo que os custos sejam distribuídos de forma mais justa, reduzindo a pressão sobre o usuário final. Ou seja, trata-se de corrigir o desequilíbrio no funcionamento destes mercados que, sob o modelo atual, só podem auferir valor de um dos lados.

Em segundo lugar, ao contrário do que pretendeu a Netflix e ao contrário do que vem sendo defendido pelas grandes empresas de tecnologia, o Tribunal Distrital de Seul esclareceu que a neutralidade de rede é uma regra que proíbe o bloqueio e o estrangulamento dos usuários finais, sendo completamente irrelevante ao litígio em questão, que envolvia duas empresas e suas transações comerciais[12].

Nesse aspecto, é fundamental se distinguir a relação existente entre ISPs e CAPs (content and application providers) daquela entre ISPs e usuários finais. Assim, são possíveis diferentes arranjos e modelos de negócios no primeiro caso sem que sejam afetadas as garantias da neutralidade de rede aos consumidores. Como visto no próprio SK Broadband v. Netflix, durante todos os anos de litígio, não houve nenhuma degradação da experiência do usuário final, visto que a SKB continuou, a despeito do andamento das discussões e apesar de a Coreia não adotar regras rígidas nesse sentido, a expandir a capacidade da infraestrutura de rede[13]. É necessário compreender, portanto, como o princípio tem sido distorcido e utilizado como uma forma de manutenção do status quo[14], evitando a devida inclusão das CAPs no custeio da infraestrutura e, por consequência, trazendo riscos à sustentabilidade do ecossistema digital.

O caso SK Broadband v. Netflix é considerado um verdadeiro benchmarking no tema do fair share. Além de ter trazido a primeira decisão no mundo que reconhece a obrigação de pagamento de taxas pelo uso da rede[15], o caso impulsionou desdobramentos na via legislativa, com a Lei de Estabilização de Serviços, consagrada no artigo 22-7 da Lei de Negócios de Telecomunicações da Coreia do Sul. A lei exige que os cinco maiores provedores de conteúdo do país (Google, Netflix, Meta, Naver e Kakao, que, juntos, são responsáveis por mais de 40% do tráfego sul-coreano) se envolvam em negociações com os provedores de banda larga para fins de recuperação de custos[16]. Apesar de não estabelecer penalidades por não cumprimento, a legislação traz salvaguardas para intervenção da autoridade concorrencial do país e, ainda, regras de transparência contratual, sendo, também, a primeira experiência internacional nesse sentido.

Nas últimas semanas, contudo, a Twitch, serviço de streaming ao vivo, anunciou que encerraria suas atividades na Coreia do Sul a partir de 27 de fevereiro de 2024, dadas as perdas significativas que tem enfrentado devido aos altos custos operacionais relacionados às taxas de rede, que seriam dez vezes mais caras do que em outros países. O episódio deve ser levado em consideração, especialmente em um contexto em que o fair share começa a ser discutido no Brasil.

Nesse sentido, ressaltam-se dois aspectos: o primeiro é a necessidade de uma definição e uma delimitação adequada de quem seriam as CAPs obrigadas a negociar com as operadoras de telecomunicação. O objetivo das propostas não deve ser incluir todas as provedoras de conteúdo, mas apenas aquelas cujo tráfego cria necessidade de investimento adicional em capacidade das redes, ou seja, apenas os grandes players – assim como tem sido o foco das recentes regulações europeias, como o Digital Services Act e o Digital Markets Act. Dessa forma, seria possível garantir a sustentabilidade da infraestrutura e, ao mesmo tempo, proteger a inovação.

O segundo aspecto diz respeito ao tamanho do mercado brasileiro, um dos maiores consumidores de conteúdo e aplicações online do mundo. Segundo recente levantamento da Comscore, os brasileiros constituem o terceiro maior público de redes sociais do mundo[17], colocando-o em uma posição privilegiada nas negociações com as big techs.

Nesse sentido, vale apontar que o Canadá, em novembro deste ano, chegou a um acordo com a Google para remuneração dos veículos jornalísticos do país nos termos do Online News Act, de maneira semelhante ao que ocorreu na Austrália. Apesar de inicialmente questionar a aprovação da lei, ameaçando remover as notícias dos resultados de pesquisa no país, os últimos desdobramentos relevam ser possível tratar dos diversos desequilíbrios existentes no ecossistema digital – seja em relação ao jornalismo, seja em relação às telecomunicações – a partir da introdução de mecanismos regulatórios adequados. Portanto, uma eventual regulação do tema no Brasil deve, para além de se atentar às peculiaridades do contexto nacional, observar e apreender com erros e acertos de experiências externas, como é o caso da Coreia do Sul e do Canadá.


[1] Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.

[2] Comissão Europeia, O futuro do setor das comunicações eletrônicas e das suas infraestruturas, 2023, disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/pt/consultations/future-electronic-communications-sector-and-its-infrastructure (acesso em 21.11.2023).

[3] FAIR Contributions Act, 2021, disponível em: https://www.congress.gov/bill/117th-congress/senate-bill/2427 (acesso em 21.11.2023).

[4] ITU, How the Republic of Korea became a world ICT leader? 2020, disponível em: https://www.itu.int/hub/2020/05/how-the-republic-of-korea-became-a-world-ict-leader/

[5] Lee, Joyce. S.Korea broadband firm sues Netflix after traffic surge from ‘Squid Game’, Reuters, 2021, disponível em: https://www.reuters.com/business/media-telecom/skorea-broadband-firm-sues-netflix-after-traffic-surge-squid-game-2021-10-01/

[6] So-Yeon, Yoo, To pay or not to pay ― Netflix, SK enter phase two of legal battle, Korea JoongAng Daily, 2022, disponível em: https://koreajoongangdaily.joins.com/2022/03/26/business/tech/Netflix-SK-Broadband-lawsuit/20220326070006217.html

[7] A discussão ocorreu com participação de uma agência de avaliação do Korea Electronics and Telecommunications Research Institute (ETRI) e do Information Communication Policy Institute (KISDI).

[8] Strand Consult, Fair Share: South Korean court orders network usage fee methodology for intractable Netflix. Broadband cost recovery update, 2023, disponível em: https://strandconsult.dk/fair-share-south-korean-court-orders-network-usage-fee-methodology-for-intractable-netflix-broadband-cost-recovery-update/

[9] Layton, Roslyn, Should 23 Million South Koreans Pay More For Broadband When Only 5 Million View Netflix? Forbes, 2022, disponível em: https://www.forbes.com/sites/roslynlayton/2022/02/23/should-23-million-south-koreans-pay-more-for-broadband-when-only-5-million-view-netflix/

[10] Cf. https://about.netflix.com/ko/news/sk-telecom-sk-broadband-and-netflix-establish-strategic-partnership-to

[11] Strand Consult, Fair Share: South Korean court orders network usage fee methodology for intractable Netflix. Broadband cost recovery update, 2023.

[12] Layton, Roslyn, Should 23 Million South Koreans Pay More For Broadband When Only 5 Million View Netflix? Forbes, 2022. https://www.forbes.com/sites/roslynlayton/2022/02/23/should-23-million-south-koreans-pay-more-for-broadband-when-only-5-million-view-netflix/

[13] Ibid.

[14] Layton, Roslyn, How Big Tech Uses Net Neutrality To Subvert Competition, ProMarket, 2023, disponível em: https://www.promarket.org/2023/05/18/how-big-tech-uses-net-neutrality-to-subvert-competition/

[15] Ji-hyoung, Son, SK-Netflix battle over network usage fee resumes at high court, The Korea Herald, 2022, disponível em: https://www.koreaherald.com/view.php?ud=20220317000693

[16] Strand Consult, Fair Share: South Korean court orders network usage fee methodology for intractable Netflix. Broadband cost recovery update, 2023.

[17] Pacete, Luiz Gustavo, Brasil é o terceiro maior consumidor de redes sociais em todo o mundo, Forbes, 2023, disponível em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2023/03/brasil-e-o-terceiro-pais-que-mais-consome-redes-sociais-em-todo-o-mundo/

RICARDO CAMPOS – Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha); doutor e mestre pela Goethe Universität; coordenador da área de direito digital da OAB Federal/ESA Nacional; diretor do Instituto Legal Grounds (São Paulo) e sócio do Warde Advogados
ALEXANDRE FREIRE – Conselheiro Diretor da Anatel, presidente do Centro de Altos Estudos em Comunicações Digitais e Inovação Tecnológica da Anatel (CEADI), presidente do Comitê de Infraestrutura de Telecomunicações da Anatel. Visiting Scholar at the Goethe Universität Frankfurt am Main’s Faculty of Law. Doutor em Direito pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFPR

Sobre o autor
Ricardo Campos

Ricardo Campos

Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Sócio do Warde Advogados, consultor jurídico e parecerista
Ricardo Campos

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Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Sócio do Warde Advogados, consultor jurídico e parecerista

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