O impacto da Starlink nas novas fronteiras da conectividade

Por Ricardo Campos

Publicado originalmente em Teletime.

A nova frente de disrupção tecnológica encontra-se na órbita não-geoestacionária de satélites[1]. Essa ambiciosa frente visa oferecer soluções de conectividade não terrestre com a promessa de dar suporte a uma vasta gama de novas tecnologias digitais, com impacto em vários setores industriais e econômicos. Nesse sentido, a chamada “NewSpace Industry[2] traz consigo vantagens de mercado como a produção acessível de pequenos satélites, lançamentos a baixíssimo custo e o fornecimento de internet diretamente do espaço (a partir dos chamados Space-based Internet providers) para comunicações em banda larga de alta velocidade, ultrafiáveis e de baixa latência. Além disso, os sistemas de satélites não geoestacionários da NewSpace Industry clamam ser uma tecnologia adequada e eficiente para as futuras redes não terrestres (non territorial networks), a fim de satisfazer os exigentes requisitos dos sistemas 6G (de sexta geração) em termos de baixo custo e conectividade global. Entretanto, a nova disrupção traz consigo não apenas vantagens mercadológicas e de acessibilidade, mas também novos desafios regulatórios a serem enfrentados no âmbito do Estado nacional, ligados, inclusive, a questões de segurança nacional.

Dentre as empresas que despontam nessa frente, está a Starlink, controlada por Elon Musk. Neste ponto, pode-se destacar que há no momento um monopólio de Musk sobre a tecnologia da Internet por satélite, o que também possui seu lado positivo. Este é um resultado de uma ideia original: lançar um grande número de satélites de baixa órbita, em vez de alguns satélites (de alto custo) distantes de alta órbita. Musk se valeu da vantagem competitiva pela geminação com a empresa de lançamento de foguetes SpaceX, da qual a Starlink é subsidiária. Musk fez essa grande aposta com o seu próprio capital, e parece que ela tem dado certo. Hoje a Starlink oferece capacidades às quais nenhum governo ou outra empresa consegue se igualar[3]. E aqui deve estar  a atenção especial para a questão: enquanto que atualmente o mercado de banda larga é oferecido, em sua maioria, por meio de rede fixa extremamente regulada no plano nacional, visando tanto a garantia da prestação do serviço assim como a proteção dos consumidores, o fornecimento de internet diretamente do espaço ainda engatinha em seu modelo regulatório. Nessa perspectiva, uma pergunta que podemos fazer é: seriam essas infraestruturas, as de fornecimento de internet diretamente do espaço, estruturas complementares às tradicionais infraestruturas na prestação de internet? Se sim, quais os cuidados regulatórios a serem tomados no plano nacional?

A questão não é tão simples, pois, além do componente da transnacionalidade da modelação jurídica, há também um forte componente tecnológico no mercado, juntamente com a combinação de ambos. Quanto ao componente da transnacionalidade, é possível perceber que este não surge somente com a digitalização, como contraintuitivamente se projeta. Já na segunda metade do século 19, ocorria a emergência de um novo direito administrativo como produto da crescente industrialização e globalização[4], como demonstrado pelo importante administrativista alemão Lorenz von Stein (1815–1890). Von Stein já chamava atenção para a nova dinâmica do direito administrativo, que, pela necessidade de coordenação de padrões técnicos de novas tecnologias e técnicas no plano global, passou a ser um direito administrativo cooperativo de duas camadas normativas, uma nacional e outra transnacional[5]. Esta é a mesma dinâmica que se observa na regulação de satélites: há uma profunda interação entre o plano regulamentar nacional e o estabelecimento de padrões no plano transnacional. No caso em tela, cristalizado na União Internacional de Telecomunicações.

Advinda da International Telegraph Union, fundada em 1865 em Paris, a União Internacional de Telecomunicações (UTI) historicamente desempenha um especial papel em organizar os arranjos por padrões técnicos de interconexões e, agora, de interoperabilidade das novas tecnologias da comunicação no plano global, como agência especializada das Nações Unidas (ONU). Diferentemente do regime jurídico para os sistemas de satélites geoestacionários, que já dispõem de uma camada de recomendações, como padrões internacionais produzidos pela UIT com grande alinhamento regulatório-cooperativo com o plano do direito administrativo dos Estados nacionais, o regime jurídico dos sistemas de satélites não geoestacionários ainda se encontra em construção. Ou melhor, “engatinhando”[6]. Neste ponto, vislumbra-se também a chance para o plano regulatório nacional emitir sinais e horizontes regulatórios para o plano transnacional da criação de padrões pela UIT, especialmente pela ANATEL.

Um desenvolvimento regulatório do plano transacional do estabelecimento de padrões pela UTI para a tecnologia já teve início, encontrando-se na determinação de limites de potência. Aqui, nos defrontamos com uma nova constelação regulatória que interliga tecnologia, regulação e a necessária cooperação entre os planos regulatórios nacional e transnacional. A fim de evitar interferência de sinais no plano internacional, o que seria prejudicial à prestação do serviço de internet globalmente, é a empresa interessada que deve postular o licenciamento do satélite perante à UIT, utilizando um software aprovado pela agência para demonstrar conformidade com os limites de potência. No caso americano, o licenciado insere primeiramente seus dados de satélite no software e certifica os resultados para a FCC, Federal Communications Commission, que regula as comunicações interestaduais e internacionais por cabo, rádio, televisão, satélite e fio. Em seguida, o licenciado envia os dados para a UIT, que deve fazer uma conclusão “favorável” ou “favorável qualificada” antes que o licenciado possa prestar o serviço. As regras também tratam da interferência entre os sistemas NGSO. A prioridade é baseada na ordem em que os sistemas concorrentes foram licenciados; os sistemas licenciados posteriormente não devem interferir indevidamente nos sistemas antes licenciados. Um licenciado NGSO pode modificar sua licença sem perder a prioridade somente se as alterações não causarem “interferência significativa” nos serviços existentes[7].

Dentro do mercado da NewSpace industry, a nova frente regulatória e de inovação se concentra num posicionamento orbital ainda mais baixo, perto dos 300 km. Em março de 2024, a FCC rejeitou um plano da Starlink para implantar satélites em órbitas terrestres muito baixas (VLEO), que variam entre 340 e 360 km[8]. Embora a tendência seja continuar implantando seus satélites bem acima de 500 quilômetros, a constelação VLEO de baixa latência tem sido um local de processos de descobrimento para inovações no setor. A SpaceX, por exemplo, tem procurado implantar um serviço direto para celulares com conexão a satélites Starlink a 360 quilômetros. Trata-se de outra inovação no mercado, visto que a operação comercial desse serviço geralmente ocorre em centenas de quilômetros acima. A FCC adiou sua decisão sobre os satélites de baixa órbita, juntamente com o pedido de licença de outros 22.488 satélites da SpaceX, deixando a porta aberta para mudanças futuras.

A Starlink não se encontra nas manchetes de jornais na atualidade apenas pelo suposto duelo estabelecido entre o seu fundador, Elon Musk, e o Ministro Alexandre de Moraes. A Starlink tem trazido, aos poucos, profundas mudanças concorrenciais e estruturais para o serviço de prestação de internet. No contexto brasileiro, do ponto de vista regulatório[9], seria interessante não somente observar o desenvolvimento no direito regulatório-comparado sobre o tema, mas também criar modulações regulatórias próprias. A título ilustrativo, algumas dessas modulações poderiam focar na criação de deveres informacionais, como condicionar o direito de exploração do satélite à obrigatoriedade da elaboração de avaliações de impacto, tanto do ponto de vista ambiental[10] quanto para temas ligados à segurança nacional e à proteção de dados pessoais coletados pelo software da antena. Esses são apenas alguns desdobramentos exemplificativos, que brevemente deverão ser enfrentados diante o crescente disparo do uso de satélites não geoestacionários em orbitas nacionais. A obtenção de informações específicas pelo Estado regulador é uma das principais formas de acompanhar e gerar conhecimento solidificado para uma futura regulação mais eficaz para esta matéria, que desponta como promissor tema dentre os novos desenvolvimentos tecnológicos no direito administrativo[11].

*-Sobre o autor: Ricardo Campos é  professor assistente na Goethe Universität (Alemanha). Vencedor dos prêmios da Academia Europeia (2023) e Werner Pünder (2022). Membro da comissão de juristas para reforma do Código Civil do Senado Federal. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente representam o ponto de vista de TELETIME.

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[1] Os tipos de órbitas em que os satélites são lançados são comumente divididos em três categorias principais, cada uma com características e aplicações específicas.  A primeira é a órbita geoestacionária (GEO), que sincroniza o movimento do satélite com a rotação da Terra. Isso faz com que o satélite permaneça fixo em relação a uma localização geográfica específica, estando posicionado a uma altitude de aproximadamente 35.800 km. Satélites em órbita GEO são amplamente utilizados para comunicações e transmissões de televisão, pois proporcionam cobertura constante para determinadas áreas. A segunda categoria é a órbita terrestre média (MEO), com satélites operando em altitudes que variam entre 8.000 e 20.000 km. Essa órbita é particularmente útil para aplicações de navegação, como os sistemas de posicionamento global (GPS). Os satélites em MEO cobrem uma área maior da Terra, mas necessitam de um sistema mais complexo de controle e comunicação. A terceira é a órbita terrestre baixa (LEO), onde os satélites operam entre 400 e 2.000 km acima da superfície terrestre. Esta órbita é ideal para pesquisa científica, observação da Terra e telecomunicações, devido à proximidade com o planeta, o que permite uma coleta de dados mais detalhada e transmissões de dados mais rápidas. No entanto, satélites em LEO têm uma vida útil operacional mais curta devido à resistência atmosférica e necessitam de constante reposição. Além dessas órbitas fixas, existem as órbitas não-geoestacionárias, que permitem que os satélites transitem por diversas partes do globo, não permanecendo fixos em relação a um ponto da superfície terrestre. A flexibilidade dessas órbitas permite abordagens dinâmicas para uma variedade de missões espaciais, demonstrando seu caráter disruptivo e inovador para o avanço das tecnologias de informação e comunicação atualmente.

[2] VENEZIA, P.; SCUPIN, J.; LEE-YOW, C. Feed network design using NewSpace techniques: Meeting mass, size, cost, and schedule requirements. IEEE Antennas and Propagation Magazine, v. 61, n. 5, p. 54-59, out. 2019.

[3] A Starlink enfrenta concorrência de diversas empresas que estão desenvolvendo ou operando constelações de satélites para oferecer internet de banda larga globalmente. Entre os principais concorrentes estão a OneWeb, que visa prover internet de alta velocidade especialmente para áreas remotas; o projeto Amazon Kuiper, ainda em desenvolvimento, que planeja lançar 3.236 satélites; a Telesat Lightspeed, que foca em serviços de internet para governos e empresas; a SES O3b mPOWER, que está expandindo sua constelação para oferecer conectividade de alta capacidade; e a AST & Science, com um projeto para conectar diretamente telefones celulares via satélite.

[4] Sobre o surgimento do novo direito administrativo com exemplos práticos ver CAMPOS, R. Metamorfoses do Direito Global. Sobre a Interação entre Direito, Tempo e Tecnologia. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 228 e ss.

[5] Classicamente, cf. STEIN, L. von. The Study of Public Administration: The Study of the Administration of Internal Affairs. Stuttgart: Gotta’scher Verlag, 1866. v. 2. Para uma abordagem contemporânea, cf. LIND, A-S.; REICHEL, J. (Org.). Administrative Law beyond the State. Leiden: Martinus Nijhoff Publisher, 2013.

[6] No caso dos NGSO, por exemplo, a UIT deu um importante passo regulatório para o mercado. Estabeleceu-se, em 2019, que tais sistemas agora são obrigados a atingir 10% de implantação dentro de dois anos (após o final do período regulatório atual para trazê-los em uso), 50% dentro de cinco anos e implantação completa da constelação dentro de sete anos. Isso porque a prática que vinha sendo observada era o chamado “armazenamento de espectro de radiofrequência”, isto é, “reservar” radiofrequências e recursos orbitais associados sem colocá-los em uso, impedindo assim que outras partes utilizassem esses recursos.

[7] Sobre o caso, cf. ESTADOS UNIDOS. Court of Appeals for the District of Columbia Circuit. Decisão no processo número 21-1123. 2023. Disponível em: https://www.cadc.uscourts.gov/internet/opinions.nsf/2A60C2722AD42005852588AA0051E2BE/$file/21-1123-1960984.pdf. Acesso em: 01 maio 2024.

[8] “Specifically, our grant here is limited to authorizing SpaceX to conduct communications in the 71.0-76.0 GHz (space- to-Earth) and 81.0-86.0 GHz (Earth-to-space) frequency bands (collectively, E-band), with the 7,500 Gen2 Starlink satellites that the Commission previously authorized in the first partial grant of this application (…) SpaceX may not deploy any satellites designed for operational altitudes below the International Space Station.74 SpaceX must communicate and collaborate with NASA to ensure that deployment and operation of its satellites does not unduly constrain deployment and operation of NASA assets and missions, supports safety of both SpaceX and NASA assets and missions and preserves long- term sustainable space-based communications services” (ESTADOS UNIDOS. Federal Communications Commission. DA-24-222A1. Data de publicação: 2024. Disponível em: https://docs.fcc.gov/public/attachments/DA-24-222A1.pdf. Acesso em: 01 maio 2024.)

[9] No Brasil, a Anatel precisa conferir o direito de exploração do satélite, que ocupará uma posição orbital específica alocada pela UIT para o Brasil (a UIT divide o espaço geoestacionário em 180 posições orbitais e as distribui).  Em 2019, a Lei nº 13.879 mudou diversas diretrizes da LGT, em especial, as diretrizes que moldavam a regulamentação de satélites. Hoje, já foram incluídas disposições que tratam de constelações não geoestacionárias (caso da Starlink). Atualmente, existem dois principais instrumentos regulatórios: a Resolução 748/21 e o Ato 9523/21.

[10] No final de 2022, o FCC adotou novas regras para combater o lixo espacial gerado pela ascensão dos satélites de órbita baixa. As novas regras dizem que um satélite descomissionado, que opera até 2.000km de altitude, só poderá permanecer em órbita por até 5 anos, e depois disso ele terá que reentrar na atmosfera, para descarte. A proposta pretende “reduzir os riscos de colisões no espaço”. Cf.: FEDERAL COMMUNICATIONS COMMISSION. FCC adopts new ‘5-year rule’ for deorbiting satellites to address growing risk of orbital debris. Disponível em: https://docs.fcc.gov/public/attachments/DOC-387720A1.pdf. Acesso em: 01 maio. 2024; e também CARDOSO, C. FCC descarte satélites LEO da SpaceX; apelação e recusa de subsídio. Meio Bit, 6 mar. 2023. Disponível em: https://meiobit.com/459368/fcc-descarte-satelites-leo-spacex-apelacao-recusa-subsidio/. Acesso em: 01 maio 2024.

[11] Sobre o tema papel central do direito administrativo moderno para a geração de conhecimento, ver a obra de Ino Augsberg recém lançada no Brasil: AUGSBERG, I. Direito Administrativo Informacional. São Paulo: Contracorrente, 2023.

Sobre o autor
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Ricardo Campos

Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Consultor jurídico e parecerista
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Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Consultor jurídico e parecerista

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