Por Alexandre Gonçalves Kassama, pesquisador do Legal Grounds Institute.
Originalmente publicado no Consultor Jurídico (Conjur), em 6 de junho de 2023, 10h01.
Seguindo a linha de nossa última coluna divulgada neste espaço[1], foi publicado, no mês de maio passado, o novo “white paper” do Fórum Econômico Mundial sobre experiências e recomendações para a regulação de criptoativos[2].
De modo amplo, o texto define criptoativo como “um ativo digital com uso financeiro que é habilitado por uma tecnologia ledger distribuída e protegido criptograficamente”, excluindo, expressamente, de seu alcance, as moedas digitais de bancos centrais (CBDCs),
O relatório da organização mundial é dividido em quatro partes, sublinhando a necessidade de uma regulamentação global, os desafios que se impõem a tal regulamentação, experiências locais de regulamentação e, finalmente, conclusões e recomendações.
Em todas as partes do texto fica nítida a dificuldade, por nós também apontada, de lidar com a nova tecnologia pelas lentes, métodos e estruturas tradicionais de regulação. Como enuncia a chamada do documento, “how best to regulate something that’s borderless, open-source, decentralized and constantly evolving?”
Quanto ao primeiro ponto, referente à necessidade de uma regulação global, são rememoradas algumas características não necessariamente exclusivas da tecnologia cripto, e que muito antes de seu desenvolvimento já prendiam a atenção de juristas, sociólogos, políticos e economistas, os quais ponderavam sobre as armas disponíveis para autoridades locais fazerem frente a desafios cujas causas e circunstâncias eram sobretudo globalizadas[3].
O diagnóstico do Fórum Econômico Mundial aponta, contudo, que fatores intrínsecos à tecnologia que move os criptoativos acabam por estender as dificuldades até um nível crítico de tensão.
Assim, enquanto na economia tradicional, ainda que globalizada, é possível identificar um ou vários locais em que se localizam as partes que transacionam e eventuais intermediários (pois mesmo os bancos internacionais com transações multicontinentais possuem sedes e agências localizáveis), o mesmo raciocínio não necessariamente se aplica aos criptoativos, sendo difícil encontrar até mesmo a legislação competente para lidar com transações peer-to-peer que podem correr o globo sem intermediários.
Ainda quando há um intermediário pré-definido, a forma como se desenvolve a tecnologia permite que as organizações se mantenham formalmente descentralizadas, sendo às vezes difícil encontrar um centro específico de operações[4]. Por ora, muitos países têm optado por manter a regulação centrada na natureza do bem, visto como um bem imaterial móvel, seguindo, assim, para diversos efeitos, a regulação do domicílio de seu detentor — o que se aplica, inclusive, ao caso brasileiro no tocante às regras tributárias.
Todavia, mesmo essa suposição pode enfrentar dificuldades ao ser concretamente aplicada, tendo em vista a existência de mecanismos que dificultam a identificação do detentor do bem, como protocolos voltados para a proteção contra essa identificação, a existência de wallets privadas não ligadas a uma identidade reconhecida, e as próprias corretoras descentralizadas (DEX — descentralized exchange), que se subtraem à possibilidade de responsabilização por políticas de identificação do cliente.
A estas dificuldades se soma também uma outra bastante antiga e agora ampliada, exposta, por exemplo, nos julgamentos dos crimes de guerra[5], referente à dificuldade de responsabilização individual em uma entidade suficientemente extensa e, como agora se põe, descentralizada.
Diferente das organizações comerciais tradicionais, a nova forma descentralizada pode trazer ponderações sobre responsabilizações que vão além de uma “diretoria” formalmente apontada e responsável, donde qualquer punição a um agente específico poderá potencialmente acarretar um certo sentimento insatisfatório de injustiça decorrente da liquefação dessa formalização.
Todas essas dificuldades, a recomendar a necessidade de regulamentação global, existem mesmo sem uma maior integração do mercado cripto com as instituições financeiras tradicionais, o que progressivamente deve ocorrer, levando a riscos de contágio e concentração de mercado que fatalmente atrairão o peso da economia real, a qual deve, assim, estar preparada para reagir em um nível global.
Definidos os desafios globais apresentados pela nova tecnologia, também a própria regulação em si apresentará dificuldades, especialmente na medida em que há uma falta de padronização de definições e taxonomia sobre o tema. Afinal, o bitcoin é uma moeda, um investimento, uma commodity? E o ether e sua plataforma? “Esfirra com orégano é minipizza?” [6]
A depender das definições iniciais surgirão abordagens muito diversas sobre a forma regulatória, o que acaba permitindo com que os players do mercado explorem brechas em uma verdadeira arbitragem entre diversas regulações, inclusive com o enfraquecimento dos mecanismos de supervisão e fiscalização que podem ser implementados satisfatoriamente em algumas jurisdições, mas não em todas[7].
Analisando, nesse aspecto, as diferentes formas já adotadas por países do globo para a regulação do mercado, são apontados 5 modelos: 1 – regulação com base em princípios, 2- regulação com base no risco; 3 – regulação “ágil”; 4 – autorregulação e corregulação; 5 – regulação pelo “enforcement”.
A primeira forma de regulação se baseia na definição de princípio gerais e resultados com eles pretendidos. De modo amplo, acaba se servindo mais de padrões da própria indústria e mercado do que de regras formalmente impositivas, denotando, assim, uma maior flexibilidade e potencial incentivo à inovação responsável, gerando, contudo, possíveis incertezas em regiões de penumbra e dificuldades no feedback dos resultados atingidos. Destaca-se a legislação de Liechtenstein e, em certa medida, do Reino Unido, como voltadas a uma regulação por princípios.
Pela regulação com base no risco, há uma definição inicial de uma matriz de riscos dos diversos tipos de criptoativos e, a partir de então, um maior ou menor nível de intervenção, conforme seja maior ou menor o risco estimado. A vantagem desse tipo de abordagem é a aplicação eficiente de recursos[8], bem como a segurança dada pela regulação específica nos casos de maior risco. São exemplos a norma de proteção ao consumidor no trato com criptoativos em Singapura, as normas de combate à lavagem de dinheiro no Reino Unido e as de proteção ao investidor em Hong Kong.
A abordagem dada pela regulação “ágil”, ao invés de focar em regras, constrói um ecossistema descentralizado responsivo e iterativo, com participações de entidades não governamentais através de guidances, sandboxes etc, os quais permitem novos desenvolvimentos com soluções localizadas. É uma abordagem mais flexível e rápida, contudo, gerando certa incerteza regulatória e necessidade de atitudes cooperativas. Entre os diversos países do mundo a adotar a prática, o relatório cita a Índia, a União Europeia, e poderíamos incluir, o Brasil, em especial na regulação dada pela CVM.
Pela auto e corregulação, a própria indústria se uniria para formular standards e normas de conduta, ou então formar uma organização não governamental, auxiliando na montagem do sistema regulatório com a supervisão do regulador estatal. Um possível risco dessa abordagem seria a possibilidade de captura da entidade e a falta de uma fiscalização adequada, enquanto os benefícios claros seriam o estímulo à inovação e o potencial ganho de confiança no ecossistema cripto. Em certo sentido, a lei sobre corretoras de criptoativos japonesa seria um exemplo desse tipo, ao outorgar poderes regulatórios à associação do setor.
Por fim, a regulação por “enforcement” seria aquela pautada por ações sancionatórias, especialmente utilizadas pela SEC americana, em que os casos punidos acabam servindo de exemplo para os players no futuro, sob o argumento de que as leis já existentes para outros setores também podem e devem ser aplicadas para o mercado cripto. Sem expressar em todas as letras, o relatório deixa claro que esse tipo de abordagem não é recomendável, justamente por fazer precluir exatamente a questão central sobre o como e se se deve regular especificamente o setor cripto. O benefício, contudo, seria a formação de uma jurisprudência sobre os casos e o reforço da responsabilização dos agentes.
Em um balanço dos cinco tipos de abordagens comentadas, a regulação por princípios e a regulação “ágil” teriam uma maior afinidade com a promoção da inovação, enquanto a regulamentação pelo risco e pelo “enforcement” trariam uma maior eficácia em sua aplicação, com vantagem para a primeira que permitiria também uma maior certeza para os negócios.
O relatório conclui então com recomendações para as organizações internacionais, para as autoridades reguladoras locais e para a indústria como um todo. Para as primeiras, urge promover um entendimento taxonômico harmonioso dos criptoativos, e, então, de acordo com cada ativo, estabelecer leis modelo e melhores práticas, para tanto sendo necessário encorajar o compartilhamento de dados entre os diversos players. Para as autoridades reguladoras, a grande recomendação seria se basear nas melhores práticas do próprio mercado já existente fora do mundo cripto, permitindo a coordenação entre diversos setores e agências, para promover a certeza regulatória e, mesmo, usar a tecnologia que favoreça, pelo seu próprio design, os objetivos da regulação.
Por fim, à indústria é recomendado colaborar com o regulador, criando standards nos diversos setores de fricção, como o do direito de consumidor e o da proteção de dados, bem como compartilhar as melhores práticas e promover uma inovação tecnológica responsável, especialmente voltada para a proteção do consumidor, considerando seu grau de maturidade.
Como se demonstra, não há exatamente um único “pathway” para a regulação, e nem tampouco os “pathways” existentes são certos, seguros e recomendáveis sem uma alta dose de ponderação. Na busca pelas melhores formas de lidar com os desafios impostos pelos criptoativos, a única certeza é a de que decisões formal e materialmente coerentes não podem ser encontradas ad hoc, e nem tampouco de forma vinculada às práticas analógicas já existentes.
[1] Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mai-23/direito-digital-financas-descentralizadas-regulacao-normativa. Acesso em 01.06.2023
[2] Disponível em https://www.weforum.org/whitepapers/pathways-to-crypto-asset-regulation-a-global-approach/. Acesso em 01.06.2023.
[3] Com Zygmunt Bauman, “os poderes reais que criam as condições nas quais todos nós atuamos flutuam no espaço global, enquanto as instituições políticas permanecem, de certo modo, ‘em terra’, são ‘locais’. Como continuam a ser majoritariamente locais, (…) tendem fatalmente a padecer de uma frágil capacidade de agir – e sobretudo de agir com eficácia, com ‘soberania’’’. Confiança e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 18-9
[4] E não por acaso a quebra da corretora FTX no ano que se passou levantou narrativas inclusive sobre a cobertura nas Bahamas que ocupava parte do staff superior.
[5] ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
[6] V. COSTA, I. Staking é security? Esfirra com oregano é minipizza?. 14.02.2023. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-fev-14/isac-costa-staking-security-esfirra-oregano-mini-pizza. Acesso em 01.06.2023.
[7] “Even if consistent supervision and monitoring were possible in some jurisdctions, it is unlikely that itwould be possible in all, potentially resulting in further information and enforcement asymmetries,” p. 16 do Relatório tratado.
[8] O que nem sempre significa uma boa medida em termos de justiça. V. por ex., o caso da “eficiência dos promotores japoneses”, que basicamente só processam um número ínfimo de casos. RAMSEYER, J. M.; RASMUSEN, E. B. Why is the japanese conviction rate so high? Disponível em https://www.jstor.org/stable/10.1086/468111. Acesso em 01.06.2023