Os direitos de personalidade na proposta de reforma do Código Civil

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Por Ricardo Campos e Carolina Xavier

Publicado originalmente no Migalhas

Em dezembro de 2023, foi publicado o parecer 1 da subcomissão de Direito Digital integrante da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. O documento reuniu diversas sugestões para modificação ou para a adição de artigos do Código, tendo em vista as recentes transformações sociais decorrentes dos avanços tecnológicos e a necessidade de que o direito se atualize e reflita tais mudanças. O documento traz inúmeras contribuições, dentre as quais aquelas relativas aos direitos da personalidade (Título II do CC), particularmente afetados pela revolução digital. 

De acordo com Maria Helena Diniz, os direitos de personalidade podem ser conceituados como “direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos, próprio corpo vivo ou morto, corpo alheio, vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária) e sua integridade moral (honra, recato, segredo pessoal, profissional e doméstico, imagem, identidade pessoal, familiar e social)”1. No mesmo sentido, Rubens Limongi França indica que tais direitos têm como objeto aspectos da pessoa do sujeito, suas emanações e prolongamentos2. Tais direitos revelam-se expressões do princípio da dignidade humana e têm como marco fundamental as Declarações dos Direitos do Homem de 1789 e 1948 das Nações Unidas e a Convenção Europeia de 1950. 

No Brasil, estes são reconhecidos, especialmente, na promulgação da Constituição Federal de 1988, cujo art. 5º, X, prevê que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. No âmbito do direito privado, o Código Civil de 2002 dedicou todo um capítulo ao tema, abordando os diferentes aspectos da personalidade, como a vida e a integridade física, o nome, a imagem, a honra e a intimidade, em um movimento que significou uma verdadeira “reelaboração da dogmática civilística”3. Tal dimensão ampla dos direitos de personalidade, bem como sua fonte constitucional, baseada na dignidade humana enquanto fundamento da República (CF, art. 1º, III), foram agora reafirmados nas sugestões da subcomissão de Direito Digital de reforma para o art. 11, que ainda acrescenta o §1º, definindo que também se incluem no conceito direitos não expressamente previstos no Código, inclusive aqueles decorrentes do desenvolvimento tecnológico. Ainda no mesmo art. 11, sugere-se a inclusão de dispositivo que reconhece que tais direitos podem sofrer limitações voluntárias em seu exercício, desde que temporárias, específicas, em respeito à boa fé objetiva e à proibição de abuso. Dessa forma, esclarece-se que a indisponibilidade dos direitos da personalidade não é absoluta, mas relativa, em consonância com a jurisprudência consolidada do STJ e com enunciados das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. 

O documento traz, também, alterações possíveis para o atual art. 12, na busca por ampliar a margem de discricionariedade de soluções judiciais e extrajudiciais e expandir o rol de legitimados no caso de tutela post mortem. A possibilidade mais ampla de proteção dos direitos apresenta-se como possível resposta, de um lado, ao maior risco de dano colocado pela era digital, e de outro, à complexidade deste novo ambiente, que pode exigir novas e variadas medidas (preventivas ou repressivas) para combater a ameaça ou a lesão aos direitos em questão. Como já reconhecido, por exemplo, pelo Tribunal de Direitos Humanos da UE, “o risco de danos causados pelo conteúdo e pelas comunicações na internet ao exercício e ao gozo dos direitos humanos e das liberdades, especialmente o direito ao respeito pela vida privada, é certamente maior do que o causado pela imprensa”5. 

Passando a aspectos mais específicos dos direitos de personalidade, o documento prevê alterações relativas à proteção do nome e do pseudônimo que representam uma pessoa natural perante a sociedade. No primeiro caso, apesar da limitação textual à divulgação do nome para fins de publicidade ou propaganda comercial (art. 18), o enunciado 278 da IV Jornada de Direito Civil já havia expandido seu escopo para a divulgação, sem autorização, de “qualidades inerentes a determinada pessoa, ainda que sem mencionar seu nome, mas sendo capaz de identificá-la”. É também assim como têm entendido autores como Gustavo Tepedino e Maria Celina Bodin de Moraes, que defendem a chamada cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, de modo que a disciplina do tema no Código Civil não possa ser taxativa, considerando a fonte constitucional da qual deriva: a proteção da personalidade6. Assim, as inovações trazidas pelo documento da subcomissão reafirmam tal ampliação, referindo-se à “identidade pessoal”, que englobaria todos os atributos que distinguem uma pessoa das demais: a voz, o nome, a imagem e, ainda, outros aspectos como a orientação sexual, a expressão de gênero, sexual, religiosa, cultural, etc. 

Além disso, o novo art. 17, em seu §2º, veda a prática de atos que atentem contra a identidade de outrem, mesmo que sem intenção difamatória – o que parece ir além da previsão anterior, que limitava publicações/representações que expusessem a pessoa ao desprezo público. Trata-se de uma proteção ampliada não só do nome, mas do direito à honra, o que ganha ainda maior relevo no contexto online, no qual são aumentadas as possibilidades de acesso e compartilhamento de informações, para fins comerciais ou não. Ao reduzir as barreiras à divulgação de informações, oferecendo mecanismos diversos para que todos, potencialmente, tenham à sua disposição amplos canais de comunicação7, as novas tecnologias tornam imperativo reforçar também a proteção dos direitos dos indivíduos. 

Outra grande inovação nesse sentido diz respeito ao possível novo §3º do art. 17, que torna ilícito o uso, a divulgação e a apropriação não autorizadas de quaisquer dos elementos que componham tal identidade, ainda que extrapolem nome, imagem ou voz. Entendimento semelhante também já havia sido firmado no enunciado 278 da IV Jornada de Direito Civil, que prevê que tal divulgação constituiria violação dos direitos de personalidade. Apesar da sugestão não prever nenhuma exceção para esses casos, demonstrando aparente rigidez, vale lembrar que a aplicação dos direitos da personalidade deve ser realizada com base no caso concreto, com utilização da técnica de ponderação dos interesses conflitantes, o que pode fazer com que tal direito ceda frente à liberdade de imprensa ou ao direito ao acesso à informação, por exemplo. É como restou consolidado no enunciado 279 da IV Jornada de Direito Civil, que prevê que, no caso de colisão, deverão ser levados em conta parâmetros como a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, a veracidade destes e as características de sua utilização. 

No segundo caso, relativo ao art. 19, busca-se proteger o pseudônimo, desde que para atividades lícitas, garantindo-lhe a mesma proteção dada ao nome. O documento sugere, agora, a extensão de tal proteção a personas, avatares digitais e outras técnicas de anonimização, cada vez mais frequentes no novo contexto digital, principalmente no metaverso. O avatar pode ser conceituado como uma forma gráfica em linguagem computacional criada com o objetivo de representar o indivíduo no ambiente online, isto é, trata-se de uma espécie de identidade virtual – que pode ou não ser assumida – devendo, também, ser protegida pelos direitos de personalidade. Não são apenas alguns bytes de dados de computador, mas uma manifestação do self  e, portanto, parte da personalidade. A nova previsão, contudo, limita tal proteção a técnicas que não visem o anonimato completo, impedindo a identificação da pessoa, o que é essencial para fins de imputação de responsabilidade quando necessário. 

A era digital trouxe consigo imensos desafios ao direito de forma geral. Ao indicar, décadas antes, que “o meio é a mensagem”8, Marshall McLuhan apontou exatamente para os efeitos que diferentes meios de comunicação, com suas características e funcionamento próprios, têm sobre os sujeitos, trazendo novos padrões nas relações humanas e nas formas de estruturação da sociedade. Cabe ao direito compreender devidamente tais transformações e oferecer respostas que protejam adequadamente os direitos das pessoas e é nesse sentido que a Subcomissão de Direito Digital para reforma do Código Civil de 2002 tem trabalhado. 


1 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Parte geral. 17a ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1, p. 135.

2 FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de direito civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

3 DONEDA, Daniel. Os direitos da personalidade no Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.), O Código Civil na perspectiva civil-constitucional: Parte Geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 51.

4 No original: “(.) the risk of harm posed by content and communications on the Internet to the exercise and enjoyment of human rights and freedoms, particularly the right to respect for private life, is certainly higher than that posed by the press”. Acórdão do TEDH, Delfi AS v. Estonia, nº 64569/09, 16.06.2015.

5 DONEDA, Daniel. Os direitos da personalidade no Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.), O Código Civil na perspectiva civil-constitucional: Parte Geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 61.

6 DIJCK, José van. The culture of connectivity: a critical history of social media. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 6.

7 ADRIAN, Angela. Avatars: a right to privacy or a right to publicity. International Journal of Intellectual Property Management, v. 2, n. 3, 2008.

8 MCLUHAN, Marshall. Understanding media: the extensions of man, Cambridge: MIT Press, 1994, p. 7.

Sobre o autor
Ricardo Campos

Ricardo Campos

Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Sócio do Warde Advogados, consultor jurídico e parecerista
Ricardo Campos

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Docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e direito público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Doutor e Mestre pela Goethe Universität. Atua com regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório. Participa recorrentemente em audiências públicas e comissões no Congresso brasileiro e em tribunais superiores para discussão de temas ligados ao direito e tecnologia. Ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022). Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Sócio do Warde Advogados, consultor jurídico e parecerista

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