Precarização do trabalho e desumanização do trabalhador pela gamificação em plataformas digitais

Por Aline Klayse dos Santos Fonseca

Publicado orginalmente na Revista Consultor Jurídico (Conjur)

Não é difícil imaginar o quão árduo pode ser conseguir um motorista através do aplicativo de transporte em determinadas datas, horários do dia e localidades, onde a falta de motoristas e a demanda excessiva resultam em preços exorbitantes e longas esperas. Mas há algo além da necessidade financeira que faça com que esses trabalhadores tomem a decisão nada agradável de permanecer trabalhando, por exemplo, dirigindo na véspera do ano novo, ao invés de estarem com seus familiares e amigos?

Pesquisas sobre a sociologia do trabalho e a economia comportamental indicam que sim. Plataformas digitais de transporte investem em estratégias para induções psicológicas para influenciar quando, onde e por quanto tempo os motoristas devem trabalhar, utilizando-se de técnicas de videogame, gráficos e recompensas capazes de incitar os trabalhadores a permanecer trabalhando mais, como ocorre quando determinado motorista está prestes a fazer o logoff e recebe a mensagem “Chegue a X reais” ou “Você está a X reais de ganhar $Y” em ganhos líquidos. Tem certeza de que quer ficar offline” [1].

Nos últimos anos, a gamificação – termo utilizado para designar a aplicação de sistemas de jogo (competição, recompensas, quantificação do comportamento do jogador/usuário) – ganhou destaque em organizações com intuito de estimular a produtividade, em domínios não relacionados a jogos. Todavia, a maior expressividade da gamificação ocorre em trabalho por plataforma digitais, com oferta de prêmios, recordes pessoais e metas diárias apresentados aos trabalhadores de forma lúdica para mobilizar a produtividade ou evocar comportamentos específicos [2].

A estratégia de gamificação está inserida no contexto do chamado capitalismo de vigilância que, para Shoshana Zuboff [3] consiste em: a) uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas; b) uma lógica econômica parasítica na qual a produção de bens e serviços é subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamento; c) uma funesta mutação do capitalismo marcada por concentrações de riqueza, conhecimento e poder sem precedentes na história da humanidade; d) a estrutura que serve de base para a economia de vigilância; e) uma ameaça tão significativa para a natureza humana no século 21 quanto foi o capitalismo industrial para o mundo natural nos séculos 19 e 20; f) a origem de um novo poder instrumentário que reivindica domínio sobre a sociedade e apresenta desafios para a democracia de mercado; g)um movimento que visa impor uma nova ordem coletiva baseada em certeza total; h) uma expropriação de direitos humanos críticos que pode ser mais bem compreendida como um golpe vindo de cima: uma destituição da soberania dos indivíduos.

A perspectiva do capitalismo de vigilância aliado à modificação de comportamento, vale-se de jogos (que envolvem comportamento com regras), recompensando algumas formas de agir e punindo outras, as empresas empregam a estrutura de jogos como meio de gerar mudança de comportamento nos jogadores. A dinâmica dos jogos envolve a motivação, emoções despertadas por competitividade e sensação de frustração, a criação da experiência de progresso rumo a um objetivo maior, ou relações que provoquem sentimentos como espírito de equipe ou agressividade, seguido de procedimentos que guiam a ação e constituem o engajamento [4].

A referida dinâmica atraiu atenção dos agentes que atuam na gig economy, expressão que designa o macroambiente de negócios caracterizado pelo predomínio de contratos de curta duração com trabalhadores independentes. A gig economy se desenvolve, principalmente, através do crowdwork e o work on-demand, sendo o primeiro o “trabalho em multidão”, valendo-se de plataformas virtuais de trabalho coletivo destinadas à captação de prestações laborais, em um universo virtualmente global de potenciais prestadores, para o cumprimento de uma série de tarefas adredemente ordenadas, e, o segundo, corresponde ao trabalho sob demanda via aplicativos. É uma forma de trabalho na qual a execução de atividades tradicionais como transporte e limpeza, por exemplo, é canalizada por aplicativos gerenciados por empresas que também intervêm na definição de padrões mínimos de qualidade de serviço e na seleção e gestão da força de trabalho [5].

Potencializando as relações sociais e jurídicas na Gig economy, o Gig leisure se consolida como forma de exploração por meio do tempo de lazer produtivo, para que o máximo de tempo do trabalhador esteja disponível para a exploração capitalista. Assim, os jogos, no modelo de produção pós-fordista, são incorporados tanto à ideologia da gig economy quanto às necessidades da produção. Por isso, empresas de mídia usam tecnologias móveis para monetizar momentos intermediários, convertendo o privado, o intermediário e o indivíduo em capital, diminuindo as barreiras que limitavam o tempo lucrativo para que os momentos privados sejam convertidos em trabalho lucrativo. Em outras palavras, assim como a produção econômica pós-fordista criou trabalho temporário, ela também criou o “lazer temporário” [6].

Em linhas gerais e notadamente quanto à gamificação, pode-se estabelecer dois grupos distintos: uma vinda de cima (gamification-from-above), associada ao conceito de ludus, que enfatiza formas de interação e feedback extraídas de jogos, mas separadas de seus contextos lúdicos originais, e, ainda, uma vinda de baixo (gamification-from-below), que é identificada com contextos lúdicos para tornar o trabalho mais fácil [7]. De todo modo, é inegável o viés comportamental, virtual e instrumental da gamificação, aliando o trabalho aos jogos competitivos e (somente em tese) divertidos.

Não obstante algumas pesquisas científicas atestem possíveis benefícios da gamificação em algumas áreas, como na educação, gostaria de me concentrar nos efeitos do fenômeno nas relações de trabalho, especialmente como instrumento de controle, precarização do trabalho e desumanização do trabalhador, o que parece ser tanto mais nefasto quando se analisa através de lentes contendo marcadores sociais da diferença, sem esquecer, é claro, do contexto histórico e cultural de determinado território.

Por exemplo, na América Latina, a gig economy e a gamificação nas plataformas digitais deve ser compreendida em um contexto em que formas históricas e estruturais de opressão, sendo o ambiente que fornece as condições ideais para que as empresas neoliberais floresçam através da maior exploração da forma de trabalho, já que em um mercado de trabalho enfraquecido, contratando recursos humanos baratos com promessas de falsas “empreendedorismo”, intensifica-se os métodos de exploração de pessoas mais necessitadas [8].

No tocante à forma, as empresas de plataformas digitais obtêm o comportamento desejado dos trabalhadores, direcionam tarefas de trabalho, supervisionam, avaliam o desempenho e organizam a disciplina e recompensas, cunhou-se a expressão gerenciamento algorítmico ou subordinação algorítmica para descrever a forma de controle do trabalho que funciona moldando um ambiente no qual há apenas alternativas programadas para a execução das tarefas de trabalho, onde o sistema pouca transparência e os trabalhadores não têm conhecimento do conjunto de regras que governam os algoritmos [9].

É aqui que a gamificação como forma de controle merece atenção, e, em particular, o uso de sistemas de reputação e classificação para gerar incentivos e sanções por desempenho. De fato, a forma de controle é indireta, entretanto, é um mecanismo cada vez mais comum para que plataformas motivem os trabalhadores, utilizando-se de critérios de desempenho objetivos (avaliações de empregos anteriores ou atividade), mesclando com critérios subjetivos (comunicação com o cliente, interação ou curtidas). Ademais, há recompensas simbólicas como estrelas ou prêmios para tornar o trabalhador mais visível [10].

E ao que parece, a dinâmica da gamificação na Gig Economy tem dado o resultado idealizado por esses grandes agentes econômicos: em estudo recente, Martin Krzywdzinsk e Christine Gerber [11] relatam que pessoas trabalhando sob automação gamificada têm 2,49 vezes mais chances de relatar alta satisfação no trabalho do que trabalhadores na categoria de controle direto pelo cliente. As chances de descrever o trabalho de plataforma como algo que as pessoas querem buscar a longo prazo são 3,77 vezes maiores sob automação gamificada do que na categoria de controle direto pelo cliente. Mas o mesmo estudo indica os trabalhadores na automação gamificada têm 1,49 vezes mais chances de se sentirem apressados e sob pressão de tempo do que os trabalhadores no regime de controle direto do cliente e têm 2,14 vezes mais chances de pressão devido o monitoramento permanente de desempenho.

Essas considerações revelam, pois, que com a ampliação do consumo e do trabalho mediados por plataformas digitais e o uso da lógica do jogo para o engajamento dos trabalhadores, agrava a precarização do trabalho, que pode ser compreendida como a generalização e institucionalização da instabilidade e da insegurança psicossocial, decorrente da transformação profunda nos modos de trabalhar, que atinge a classe trabalhadora em sua totalidade, efetiva por meio da desregulação da legislação trabalhista e previdenciária [12].

Considerando que, especulativamente, mais de quatro milhões de trabalhadores do serviço de entrega utilizam plataformas digitais como Uber, Rappi, 99 e iFood e que a maioria desses trabalhadores são homens, jovens adultos, pardos e pretos em jornadas de trabalho que passam das dez horas diárias, em ao menos seis dias na semana, com rendimentos variáveis entre R$ 130,00 e R$ 520,00 por semana [13], tudo converge para afirmar que a precarização do trabalho em plataformas digitais e por gamificação é fortemente influenciada por marcadores sociais da diferença e forma uma população de trabalhadores cada vez mais precária, com baixa proteção justrabalhista.

A precariedade é amplificada por questões de gênero, raça e classe pois, como o aumento da gamificação representa uma combinação poderosa de formas de controle do trabalho e oportunidades de renda para uma população com baixa perspectiva de empregabilidade, há maior indução para permanecer logado e trabalhando e com aceitação dessa forma de controle do trabalho (mormente para trabalhadores mais vulnerabilizados), ao mesmo tempo em que legitima objetivos ideológicos que violam direitos humanos fundamentais e desumaniza o ser humano.


REFERÊNCIAS

MOHLMANN, Mareike; ZALMANSON, Lior. Hands on the Wheel: Navigating Algorithmic Management and Uber Drivers Autonomy. ICIS, Proceedings, 2017.
https://aisel.aisnet.org/icis2017/DigitalPlatforms/Presentations/3

NICHOLS, Randall. This is Gig Leisure: Games, Gamification, and Gig Labor. In: The Gig Economy: Workers and Media in the Age of Convergence. Routledge, 2021.

OLIVEIRA, R. C. de. Gamification and uberized work in application companies. RAE – Revista de Administracao de Empresas , [S. l.], v. 61, n. 4, p. 1–10, 2021. DOI: 10.1590/S0034-759020210407. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rae/article/view/84313. Acesso em: 27 dez. 2024.

POPAN, Cosmin; ANAYA-BOIG, Esther. The intersectional precarity of platform cycle delivery workers, Center for Open Science, 2021.

SCHEIBER, Noam. How Uber uses psychological tricks to push its drivers’ buttons

The New York Times, April 3, 2017. Disponível em https://www.nytimes.com/interactive/2017/04/02/technology/uber-drivers-psychological-tricks.html

UCHÔA-DE-OLIVEIRA, Flávia Manuella; BASTOS, Juliano Almeida. Uberização: precarização do trabalho e ação política dos trabalhadores no Brasil de 2020. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, [S. l.], v. 25, p. e-180691, 2022. DOI: 10.11606/issn.1981-0490.cpst.2022.180691. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/180691.. Acesso em: 27 dez. 2024.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

FELICIANO, Guilherme Guimarães e PASQUALETO, Olívia de Quintana Figueiredo. (Re)descobrindo o direito do trabalho: Gig economy, uberização do trabalho e outras flexões. Jota. São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2019. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juizo-de-valor/redescobrindo-o-direito-do-trabalho-06052019. Acesso em: 27 dez. 2024.

[1] SCHEIBER, Noam. How Uber uses psychological tricks to push its drivers’ buttons

The New York Times, April 3, 2017. Disponível em https://www.nytimes.com/interactive/2017/04/02/technology/uber-drivers-psychological-tricks.html. Acesso em: 27 dec. 2024.

[2] OLIVEIRA, R. C. de. Gamification and uberized work in application companies. RAE – Revista de Administracao de Empresas , [S. l.], v. 61, n. 4, p. 1–10, 2021, p. 3 DOI: 10.1590/S0034-759020210407. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rae/article/view/84313. Acesso em: 22 dec. 2024.

[3] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. p. 15.

[4] Op. Cit, p. 373.

[5] FELICIANO, Guilherme Guimarães e PASQUALETO, Olívia de Quintana Figueiredo. (Re)descobrindo o direito do trabalho: Gig economy, uberização do trabalho e outras flexões. Jota. São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2019. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juizo-de-valor/redescobrindo-o-direito-do-trabalho-06052019. Acesso em: 27 dez. 2024.

[6] NICHOLS, Randall. This is Gig Leisure: Games, Gamification, and Gig Labor. In: The Gig Economy: Workers and Media in the Age of Convergence. Routledge, 2021, p. 179.

[7] OLIVEIRA, R. C. de. Gamification and uberized work in application companies. RAE – Revista de Administracao de Empresas , [S. l.], v. 61, n. 4, p. 1–10, 2021, p. 5 DOI: 10.1590/S0034-759020210407. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rae/article/view/84313. Acesso em: 22 dez 2024.

[8] POPAN, Cosmin; ANAYA-BOIG, Esther. The intersectional precarity of platform cycle delivery workers, Center for Open Science, 2021.

[9] MOHLMANN, Mareike; ZALMANSON, Lior. Hands on the Wheel: Navigating Algorithmic Management and Uber Drivers Autonomy. ICIS, Proceedings, 2017.
https://aisel.aisnet.org/icis2017/DigitalPlatforms/Presentations/3

[10] KRZYWDZINSKI, Martin; GERBER, Christine. Between automation and gamification: forms of labour control on crowdwork platforms. Work in the Global Economy, 202i, p. 174. Disponível em https://doi.org/10.1332/273241721X16295434739161. Acesso em 21 Dez. 2024.

[11] Op. Cit, p. 176.

[12] UCHÔA-DE-OLIVEIRA, Flávia Manuella; BASTOS, Juliano Almeida. Uberização: precarização do trabalho e ação política dos trabalhadores no Brasil de 2020. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, [S. l.], v. 25, 2022, p. 4. DOI: 10.11606/issn.1981-0490.cpst.2022.180691. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/180691.. Acesso em: 26 dez. 2024.

[13] Op. Cit, p. 6.


ALINE KLAYSE DOS SANTOS FONSECA. Docente em Direito do Instituto Federal do Pará, mestra em Direito pela Universidade Federal do Pará, doutoranda em Direito Civil na Universidade de São Paulo (USP), advogada e membro-pesquisadora do Legal Grounds Institute.

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Produzindo estudos sobre políticas públicas para a comunicação social, novas mídias, tecnologias digitais da informação e proteção de dados pessoais, buscando ajudar na construção de uma esfera pública orientada pelos valores da democracia, da liberdade individual, dos direitos humanos e da autodeterminação informacional, em ambiente de mercado pautado pela liberdade de iniciativa e pela inovação.
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