Por Ricardo Campos
Em agosto de 2023, foi criada a comissão de juristas responsável por propor a atualização do Código Civil brasileiro, diploma que reúne regras fundamentais para a regulação da vida das pessoas, definindo marcos como o início da personalidade de pessoas naturais, as bases legais e os contornos de contratos e negócios jurídicos, bem como os regimes sucessórios. Presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, coube à comissão refletir acerca das inúmeras transformações ocorridas na sociedade nos últimos vinte anos e realizar as modificações necessárias para garantir uma legislação efetiva, segura e que proteja as relações privadas de forma adequada.
Tais transformações foram impulsionadas especialmente pela revolução digital, processo a partir do qual a internet, as redes sociais e, mais recentemente, a inteligência artificial passaram a compor e intermediar relações e práticas jurídicas. Isso significou não apenas uma alteração nos meios pelos quais tais relações ocorrem, mas também permitiu uma miríade de novas relações, mais dinâmicas e complexas. Para o direito, surgiu a necessidade, portanto, de, por um lado, atualizar regras pensadas para um contexto anterior – muitas vezes já discutidas e/ou consolidadas na construção jurisprudencial do STF e do STJ – e, por outro lado, estabelecer novas regras para um novo cenário, preenchendo lacunas e garantindo novas formas de proteção de direitos. Essa intenção de reforma também reflete e dialoga com diversos desdobramentos legais observados em outras jurisdições ao redor do mundo, que têm buscado adaptar suas legislações às novas demandas impostas pela transformação digital.
Destarte, para alcançar os objetivos propostos, não apenas os tradicionais oito livros foram objeto de reforma. Um livro inteiro e inédito foi dedicado exclusivamente ao direito digital, reafirmando seu grau de especialização e relevância na estruturação das sociedades atuais. Chamado Direito Digital Civil, o livro possui dez capítulos, que visam adaptar tradicionais institutos de direito civil para o ambiente digital, como a celebração de contratos (caso dos smartcontrats), a tutela e a transmissão hereditária do patrimônio (com previsões sobre tokens e criptomoedas, bem como sobre o reconhecimento do patrimônio digital como parte da herança) e a validade e/ou vícios na manifestação da vontade (por meio de disposições sobre assinaturas eletrônicas).
O livro, no entanto, também trata de novos desafios colocados por este novo paradigma, consolidando novos direitos e obrigações. O segundo capítulo, e.g., reafirma a garantia dos direitos das pessoas no ambiente online, incluindo o acesso a mecanismos de justa composição e reparação em caso de violações. Merece destaque o dispositivo que reconhece a necessidade de adaptação contínua da tutela de direitos de personalidade para abranger dimensões decorrentes do avanço das tecnologias – em consonância com o caráter dinâmico do ambiente digital. Nesse sentido, o livro dispõe sobre os neurodireitos enquanto dimensão indissociável da personalidade, com vistas à proteção e preservação do direito à privacidade e à autodeterminação frente aos avanços da neurociência e de neurotecnologias1. Além disso, reconhece o chamado direito ao esquecimento e o direito à desindexação que, desde pelo menos 2014 com a decisão do TJUE em Google Spain v. Mario Costeja Gonzáles, vem sendo difundido e desenvolvido enquanto exigência do direito à privacidade e à proteção de dados pessoais2.
O quarto capítulo, por sua vez, busca assegurar os direitos das pessoas a um ambiente digital seguro e confiável por meio de obrigações colocadas aos provedores de plataformas digitais. A iniciativa está plenamente alinhada com as tendências, observadas nos últimos anos e em diferentes ordenamentos, de revisão do regime jurídico de responsabilidade dos intermediários da internet à luz do reconhecimento de sua capacidade de controlar o fluxo comunicacional e das externalidades negativas associadas a esse poder3. A título ilustrativo, para além da jurisprudência recente dos Estados Unidos, que vem demarcando limites e contornos para a Seção 230 do Communications Decency Act4, o recente Regulamento europeu dos Serviços Digitais representa um marco nesta mudança de paradigma, ao prever um robusto sistema de supervisão pública para a atividade privada das plataformas digitais, com amplas obrigações substantivas e procedimentais5.
Nesse sentido, o projeto de reforma do Código Civil incluiu parâmetros para a moderação de conteúdo, obrigações de diligência para mitigar a circulação de conteúdo ilícito, obrigações de disponibilização de mecanismos eficazes de reclamação e reparação, bem como requisitos de transparência. O texto também obtém inspiração do Regulamento europeu na medida em que prevê obrigações adicionais às chamadas “plataformas digitais de grande alcance”, conceituadas como servicos de hospedagem virtual que tenham como funcionalidade principal o armazenamento e a difusão de informações ao público, cujo número médio de usuários mensais no país seja superior a dez milhões. A estas plataformas cabe o dever de identificar e avaliar riscos sistêmicos decorrentes da concepção ou do funcionamento de seu serviço6.
Vale destacar que a diferenciação das empresas quanto ao número de usuários para fins de estruturar uma regulação escalonada também é acompanhada da diferenciação entre os tipos de servidos fornecidos. Em relação ao dever de realizar avaliações de riscos sistêmicos, por exemplo, o texto não se aplica a provedores de comércio eletrônico, provedores de serviços voltados à realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz, provedores de enciclopédias online sem fins lucrativos e de repositórios científicos e educativos, dentre outros. Diante da complexidade que marca o ecossistema da internet, cada vez mais é imprescindível se reconhecer os diferentes tipos de serviços digitais e levar em conta seus múltiplos modelos operacionais e riscos associados, a fim de se alcançar uma regulação adequada, eficiente e que proteja a inovação7.
Todo este novo arcabouço proposto pela comissão culmina também em um novo regime de responsabilização para as plataformas digitais, baseado no descumprimento sistemático das obrigações previstas no texto para o novo Código Civil ou em danos causados por conteúdo distribuído por meio de publicidade de plataforma8. Sua eventual aprovação, portanto, pressupõe a revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet que, conforme redação atual, apenas permite a responsabilização civil por danos decorrentes de conteúdo de terceiros caso haja descumprimento de ordem judicial específica.
Diante da crescente compreensão acerca da inadequação de tal dispositivo no contexto de desenvolvimento da internet hoje, o projeto do novo Código Civil é apenas uma das frentes que buscam desafiá-lo, demonstrando a urgência da empreitada. Também o Projeto de lei 2.630/20 e, mais recentemente, as discussões no STF no âmbito do RE 1.037.396/SP (Tema 987) abordam o tema. O Tribunal deve decidir em breve sobre a constitucionalidade do art. 19 e desenhar parâmetros para o futuro da responsabilização das plataformas digitais no Brasil – tarefa que, a meu ver, compreende, de um lado, a diferenciação conceitual entre os diferentes provedores de aplicação da internet e, de outro, o estabelecimento de obrigações procedimentais concretas para a moderação de conteúdo.
Está claro que o direito precisa acompanhar as rápidas transformações causadas pela digitalização nos âmbitos social, econômico e político e responder aos novos desafios de forma eficaz, garantindo segurança jurídica e a proteção de direitos. A proposta de reforma do Código Civil brasileiro, em suma, não apenas responde às demandas internas decorrentes das transformações digitais, mas também se alinha a um movimento global de atualização das legislações para enfrentar os desafios e as oportunidades trazidos pela revolução tecnológica. É o caso, tal qual tratado neste artigo, da tentativa de regulação da responsabilidade civil dos provedores de serviços digitais, central no horizonte regulatório brasileiro (e mundial) atual e que tem o potencial de definir o tipo de sociedade e de internet que queremos para o futuro. Inspirando-se em experiências regulatórias internacionais e promovendo inovações e tropicalizações adequadas ao contexto nacional, o projeto reforça o compromisso de garantir uma regulação eficiente, protetiva e adaptável. Ao fazer isso, reafirma a centralidade do direito civil como ferramenta para equilibrar inovação, segurança jurídica e proteção de direitos em um cenário marcado pela complexidade das relações digitais.
1 Sobre neurodireitos, cf., entre outros, IENCA, Marcello. On Neurorights. Frontiers in Human Neuroscience, v.15, 2021. Disponível aqui; FAZANO, Humberto; MARTINS, Amanda, Atualização do Código Civil como oportunidade para codificação dos neurodireitos, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-21/atualizacao-do-codigo-civil-como-oportunidade-para-codificacao-dos-neurodireitos/
2 Para mais, cf. CAMPOS, Ricardo; SANTOS, Carolina; OLIVEIRA, Samuel. Direito ao esquecimento e à desindexação: avanços na proposta de atualização do Código Civil, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-23/direito-ao-esquecimento-e-a-desindexacao-no-brasil-avancos-na-proposta-de-atualizacao-do-codigo-civil/
3 Sobre isso, cf. CAMPOS, Ricardo. Curadores da Liberdade de expressão e suas obrigações, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-26/curadores-da-liberdade-de-expressao-e-suas-obrigacoes/.
4 KLONICK, Kate. The new governors: the people, rules, and processes governing online speech, Harvard Law Review, v. 131, n. 6, 2018.
5 FARINHO, Domingos. Fundamental rights and conflict resolution in the Digital Services Act Proposal: a first approach, E-publica, v. 9, n. 1, 2022.
6 CAMPOS, Ricardo; SANTOS, Carolina; OLIVEIRA, Samuel. Riscos sistêmicos no Digital Services Act e suas lições para o Brasil, disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/direito-digital-riscos-sistemicos-dsa-licoes-brasil/
7 Sobre o tema, ver CAMPOS, Ricardo. O art. 19 do Marco Civil da Internet e a pluralidade de provedores da internet: Da necessidade de diferenciação conceitual (e regulatória) dos provedores de aplicação de internet, 20.09.2024, disponível aqui.
8 CAMPOS, Ricardo; SANTOS, Carolina. Responsabilidade civil dos provedores de plataformas digitais no novo CC, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-24/responsabilidade-civil-dos-provedores-de-plataformas-digitais-no-novo-cc/