Por Juliano Maranhão
Publicado originalmente em Valor Econômico
O Ministério da Fazenda publicou, recentemente, relatório contendo análise sobre os desafios concorrenciais nos chamados “mercados digitais”, conceito um tanto vago, que contempla diferentes tipos serviços on-line, como serviços de busca, marketplaces e redes sociais, os quais vêm sendo objeto de debate em função da concentração de mercado e o papel das grandes plataformas digitais, as chamadas big techs, na dinâmica concorrencial.
O debate gira em torno da necessidade ou não de se estabelecer restrições à atuação de big techs nos seus respectivos mercados, estabelecendo para essas um regime especial de competição, como forma de estimular a atuação competitiva de entrantes e, assim, aumentar a contestabilidade desses mercados. Além de estímulo à competição, fala-se em enfrentar uma espécie de “falha de ecossistema”, o que diz respeito a uma distribuição mais justa dos ganhos entre os diferentes agentes nos diversos serviços complementares que giram em torno de grandes plataformas digitais.
Ao examinar iniciativas internacionais de regulação, o Ministério da Fazenda faz importante constatação: não há consenso. Alguns países optaram por manter intacta a legislação de defesa da concorrência, outros por aperfeiçoamentos procedimentais na legislação para especializar ou acelerar a análise ex post (contextual) de condutas. Outros pela imposição de proibições ex ante a certas práticas, mas com diversas abordagens e graus de detalhamento. Nessa miríade, a sugestão do Ministério da Fazenda seria algo próximo ao modelo britânico, em que o Cade receberia poderes para estabelecer proibições de condutas a plataformas indicadas como dominantes, para alguns serviços, no intuito aumentar a contestabilidade, ou seja, a possibilidade de rivais ou entrantes exercerem pressões competitivas para impulsionar a concorrência.
Sobretudo, o Ministério da Fazenda, sabiamente, indica cautela, a partir de novo debate legislativo, distinto do Projeto de Lei (PL) nº 2768/22, que atualmente tramita na Câmara dos Deputados e se assemelha à lei europeia, o chamado Digital Markets Act, com imposição de proibições ex ante, já no âmbito legislativo, quanto a condutas discriminatórias, recusa ou criação de dificuldade de acesso a plataformas digitais e tratamento inadequado de dados pessoais, que possa trazer vantagens competitivas.
A cautela do Ministério da Fazenda é sábia, pois proibições ex ante podem impedir práticas comerciais capazes de trazer eficiências compensatórias que, apesar de criarem vantagens competitivas aos agentes que a desenvolvem, acabam por beneficiar os usuários. Note que a defesa da concorrência não tem por fim combatera concentração de mercados em si, mas proteger o investimento em diferenciação e inovação, propiciando mais opções e vantagens aos consumidores finais, aspecto crucial na dinâmica dos serviços on-line.
Na nossa legislação antitruste, apenas a formação de cartel foi, em 2011, por lei, tornada uma proibição ex ante. Isso porque o Cade, nos doze anos anteriores, condenou absolutamente todos os cartéis detectados, não encontrando qualquer justificativa comercial econômica para a prática, nos 52 casos analisados no período. Em contraste, nos últimos 10 anos, para a prática de discriminação comercial, um dos alvos do debate regulatório atual, apenas 27% dos casos detectados foram condenados pelo Cade, nenhum deles no segmento digital, sendo os demais justificados por razões comerciais contextuais ou por trazer eficiências compensatórias aos consumidores.
Assim, a sugestão inicial do Ministério da Fazenda para o debate pode colocar o Cade em dilema entre o erro e a trivialidade. Caso não haja sucessivos precedentes de condenação de prática específica em determinado serviço digital, sua proibição ex ante pelo Cade pode, além de gerar insegurança, trazer o risco de se sacrificar potenciais eficiências e inovação, prejudicando consumidores. Caso contrário, havendo sólida jurisprudência no sentido de que a conduta no mercado digital não tem qualquer perspectiva de gerar eficiências ou inovação, apenas prejuízo ao mercado, um enunciado proibitivo pelo Cade teria pouco efeito, apenas sintetizando os precedentes, sem a força vinculante de uma lei.
Não seria melhor equipar o Cade com alterações legislativas procedimentais, algumas inclusive já sugeridas pelo Ministério da Fazenda, e então aguardar precedentes firmes de condenação pela autoridade de antitruste para proibir legalmente práticas on-line anticompetitivas, que, segundo a experiência observada, não tenham qualquer perspectiva de trazer eficiências econômicas e benefícios aos usuários? Essa seria uma abordagem regulatória baseada em evidências.
Os esforços de regulação nesse campo, em diferentes jurisdições, têm sido retrospectivos, olhando para o histórico de concentração de big techs. Mas toda regulação deve, antes, ser prospectiva. E se nos concentrarmos nessa prospecção, a evidência atual que salta aos olhos é a ascensão das inteligências artificiais generativas, que trouxeram novos mercados e novos atores econômicos robustos no cenário digital, como a Open AI, e acirraram a rivalidade entre as plataformas, em uma corrida frenética de investimentos, alianças e incorporação de IA nos diferentes tipos de serviços. Todo esse movimento parecia impensável há alguns anos, no início das discussões e propostas sobre regulação das plataformas digitais.
O debate proposto pelo Ministério da Fazenda é válido e deve avançar a partir de estudos e evidências, mas é sempre bom lembrar que o esforço do Estado em fomentar a concorrência pode ser novamente superado pelas forças criativas subjacentes à dinâmica invisível da própria concorrência.
JULIANO MARANHÃO: Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt. Pós-doutorado na Faculdade de Ciência da Computação da Universidade de Utrecht. Membro do Comitê Executivo da International Association for Artificial Intelligence and Law (IAAIL). Pesquisador Associado do Center for Artificial Intelligence USP-IBM (C4AI/USP) e do Centro de Pesquisa Inteligência Artificial Recriando Ambientes – IARA. Diretor do Legal Grounds Institute e da Lawgorithm (USP).