Por Milton Pereira de França Netto (Legal Grounds) e Tainá Aguiar Junquilho (Lawgorithm), publicado na Coluna de Opinião do Conjur.
Produzir artigos e pesquisas na área do Direito Digital constitui árdua tarefa. A começar, pela controvérsia que orbita a nomenclatura e a abrangência atribuídas ao domínio, previamente identificado pelas alcunhas de Direito Cibernético [1] ou Informático. No entanto, um problema maior acomete os pesquisadores de suas temáticas: a obsolescência — quase que instantânea — das análises produzidas.
Sofremos de uma generalizada síndrome de “Benjamin Button”, por meio da qual os textos produzidos pelos estudiosos do Direito Digital já nascem velhos aos olhos do público, tal como o protagonista do longa-metragem dirigido por David Fincher em 2008, ainda que tenham sido redigidos paralelamente aos fenômenos que investigam.
O drama O Curioso Caso de Benjamin Button [2], levemente baseado no homônimo conto de Scott F. Fitzgerald, se serve da fantasia para explorar, com uma delicadeza ímpar, os acontecimentos da peculiar vida do personagem interpretado pelo ator Brad Pitt, a partir da narrativa epistolar intermediada pelo seu grande amor, a bailarina Daisy (Cate Blanchett), e a sua filha, Caroline (Julia Ormond). A travessia por um envelhecimento atípico singulariza a trama, centrada no elemento do tempo: enquanto Benjamin rejuvenesce a cada dia que passa, Daisy percorre o inadiável e belo caminho das rugas e dos fios de cabelo branco.
Timing. Vital ao relacionamento do casal, o termo sintetiza a força-motriz no processo de inovação, retratado nos escritos sobre Direito & Tecnologia [3]. Jean Tirole sublinha como a delimitação temporal impacta a fruição de vantagens econômicas atreladas a novos produtos ou serviços. No ciclo da informação, aqueles que tiveram o timing para efetuar descobertas e conceber novidades concentram os lucros iniciais de sua comercialização, pois monopolizam o saber alusivo aos meandros de seu funcionamento. Com o passar do tempo, os concorrentes assimilam esse savoir-faire, desenvolvem produtos similares e os lançam no mercado, nivelando, assim, os ganhos econômicos [4].
Nesse cenário, observa-se a ascensão e o declínio das ondas de inovação descritas pelo economista Joseph Schumpeter. Responsável pela popularização da noção de destruição criadora, o austríaco retratava o empresário inovador como o principal impulsionador da modernização nos fatores de produção, a qual dinamizaria ciclos econômicos já estagnados. A introdução de mudanças transformadoras por tal agente despertaria uma onda de inovação, cujo rompante coincidiria com a sua gradual replicação pelos rivais de segmento e cujo ocaso se daria quanto todos ocupassem um idêntico patamar. Nesse instante, outra novidade seria apresentada e reiniciaria a conjuntura cíclica descrita [5].
O fenômeno não atinge somente a academia, mas também o debate regulatório, comumente equiparado à fábula da disputa entre a lebre e a tartaruga, tendo em vista que boa parte das leis que disciplinam o mercado digital já nascem desatualizadas. Na corrida pela normatização das inovações tecnológicas, o Direito larga numa considerável posição de desvantagem em comparação aos inevitáveis fatos novos.
Tome-se como exemplo o Artificial Intelligence Act (AI Act), o projeto legislativo em torno das aplicações de inteligência artificial na União Europeia, que, em pouco mais de três anos de discussão, já passou por mais de três mil emendas, incluindo-se aqui as modificações destinadas a assegurar maior transparência na utilização das ferramentas de IA generativa [6].
De forma semelhante, o robusto relatório apresentado pela Comissão de Juristas designada pelo Senado Federal — cujo conteúdo ultrapassa a impressionante marca de 900 páginas — restou publicado poucas semanas após as mudanças ocasionadas pela abertura ao público do acesso à versão 3.5 do ChatGPT [7]. Efetuado pela desenvolvedora OpenAI no final de outubro, o lançamento da nova versão do modelo de IA generativa originou uma série de desafios técnicos e democratizou a utilização de um sistema inteligente que não representava o enfoque inicial das propostas legislativas, e, portanto, cuja compreensão ainda não havia amadurecido.
Porém, torna-se importante frisar que, não obstante os textos legais e doutrinários na área do Direito Digital possam ser taxados como ultrapassados diante da efervescência das descobertas tecnológicas, essas produções têm o condão de rejuvenescer ao longo de sua existência, tal como o protagonista do filme em comento. Nesse sentido, elas podem representar instrumentos para que vindouros pesquisadores rememorem os acontecimentos da 4ª Revolução Industrial em curso, desde que se atentem à valiosa lição de Luciano Oliveira, desencorajadora de um exaustivo (e quiçá desnecessário) resgate do “Código de Hamurabi” — agora, em meio ao expansivo universo da inteligência artificial [8].
O efeito “Benjamin Button”, típico das pesquisas e escritos a respeito das novas tecnologias, é curioso e desperta reflexões quanto à efemeridade das coisas com o caminhar do tempo, que, como canta Caetano, mostra-se “compositor dos destinos” e “tambor de todos os ritmos” [9], impondo-se de maneira soberana enquanto sacramenta a obsolescência das conclusões acadêmicas e investigativas. Por mais desafiadora que a tarefa de construir saberes na área seja, ainda acreditamos ser possível reunirmo-nos para contemplar as belezas das novas descobertas e problematizar a vida.
[1] Como bem destaca Alexandre Pimentel, não obstante várias tentativas de conceituar o instituto concebido por Norbert Wiener tenham sido performadas, “atualmente existe uma tendência amplamente difundida no sentido de considerar a cibernética como a ciência investigativa das leis gerais dos sistemas de tratamento da informação, pois todo e qualquer sistema de informação tem necessariamente que recolher, elaborar e transmitir as informações”. PIMENTEL, Alexandre Freire. Tratado de Direito e Processo Tecnológico – Volume II – Big Data, Justiça 4.0 e a Digitalização da Processualização, Ciberespaço, Metaverso, Legal Design e Visual Law: O Direito Processual Tecnológico. Recife: Editora Publius, 2023, p. 64. Por conseguinte, caberia ao ramo do Direito Cibernético examinar as repercussões jurídicas em torno de tais balizamentos universais.
[2] O CURIOSO CASO DE BENJAMIN BUTTON (The Curious Case of Benjamin Button). Diretor: David Fincher. Produção de Warner Bros Pictures e de The Kennedy/Marshall Company. Estados Unidos: Prime Video, 2008. Streaming.
[3] Embora mais simples que as demais nomenclaturas criadas pela doutrina, a expressão “Direito & Tecnologia” parece amalgamar, de maneira ampla, os fenômenos pretéritos, presentes e futuros a serem avaliados pelos seus estudiosos.
[4] TIROLE, Jean. Economics for the Common Good. New Jersey: Princeton University Press, 2017, p. 430-442.
[5] SCHUMPETER, Joseph Alois. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
[6] LOMAS, Natasha. EU lawmakers back transparency and safety rules for generative AI. TechCruch+, [S.l], 11 mai. 2023. Disponível em: https://bit.ly/3KcQMxk. Acesso em: 23 jul. 2023.
[7] O relatório encontra-se disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/Relato%CC%81rio%20final%20CJSUBIA.pdf. Acesso em 25 jul. 2023.
[8] OLIVEIRA, Luciano. Não fale do Código de Hamurabi! A pesquisa sócio-jurídica na pós-graduação em Direito. E-disciplinas USP. Disponível em: https://bit.ly/3KdFuc4. Acesso em: 25 jul. 2023.
[9] As poéticas descrições fazem parte da canção Oração ao Tempo, composta e interpretada por Caetano Veloso no álbum Cinema Transcendental, de 1979.