Por Ricardo Campos e Rony Vainzof
Publicado orginalmente no Conjur.
Na atual sociedade da informação, com a plataformização da internet e a migração da vida cotidiana para o mundo digital [1], a definição esculpida no Marco Civil da Internet de 2014 de provedores de aplicação atingiu tamanho nível de abrangência que praticamente passou a englobar, em um só conceito, diversos (e distintos entre si) serviços existentes, como redes sociais, buscadores, mensageria instantânea, nuvem, games, hospedagem, comércio eletrônico, marketplace entre outros. Essa indiferenciação conceitual vem aos poucos causando profundos problemas e questionamentos como no tema aqui levantado do julgamento do artigo 19 do MCI pelo Supremo Tribunal Federal.
O artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI) é um ponto central da discussão sobre responsabilidade dos provedores de aplicações, especialmente por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros. Atualmente, o STF possui dois casos paradigmáticos — os Recursos Extraordinários (REs) 1.037.396 e 1.057.258, que discutem assuntos de grande repercussão geral, identificados como Temas 533 e 987.
O Tema 533, sob relatoria do ministro Fux, considera o dever das empresas hospedeiras de internet em monitorar e retirar conteúdo considerado ofensivo sem intervenção judicial. Por outro lado, o Tema 987, relatado pelo ministro Toffoli, discute a constitucionalidade da exigência de uma ordem judicial prévia e específica para a exclusão de conteúdo, essencial para a responsabilização civil dos provedores por atos ilícitos cometidos por terceiros.
De maneira resumida, ambos abordam a responsabilidade dos provedores por conteúdo gerado pelos usuários e a possibilidade de remoção daqueles ofensivos a direitos de personalidade, que incitem ódio ou difundam notícias falsas com base em denúncias ou notificações extrajudiciais.
Uma questão central para o debate, porém, não tem recebido a devida atenção: a urgente necessidade de diferenciação conceitual de provedores de aplicação de internet. O Marco Civil da Internet (MCI), em seu artigo 5º, traz a definição de “conexão à internet” (inciso V) [2] e “aplicações de internet” (inciso VII) [3] — distinção que qualifica “provedores de conexão” (comumente representados pelas empresas de telecomunicações) e “provedores de aplicações” (representando, de forma ampla, os modelos de negócios digitais).
Ocorre que, especialmente no segundo caso, ao utilizar de um termo único para se referir a diferentes setores econômicos da vida digital com características completamente distintas, o MCI acaba por tratá-los de forma isonômica, o que implica desafios significativos na aplicação prática de suas normas.
Do modo como foi construída, baseada em instrumentos regulatórios do início deste século, a legislação brasileira nasceu anacrônica em relação a determinados aspectos, dentre os quais o reconhecimento das particularidades dos diferentes modelos de negócios da sociedade digital. Em outras palavras, o Marco Civil da Internet, ao colocar “em um mesmo saco” diferentes intermediários [4], como as citadas redes sociais, ferramentas de busca e marketplaces, cria diversos obstáculos à correta identificação de direitos dos usuários e respectivos deveres das plataformas no ambiente digital.
Redes sociais, provedores de buscas, streamings e marketplaces, por exemplo, são plataformas digitais que, apesar de compartilharem o papel de intermediários na web (e, portanto, serem classificadas genericamente como “provedores de aplicação”, nos termos do MCI), possuem objetivos e funções distintos que refletem as necessidades diversas de seus usuários. Redes sociais, por exemplo, são construídas em torno da ideia de compartilhamento de informações e interação social, permitindo aos usuários compartilhar uma variedade de conteúdos, incluindo textos, fotos, vídeos e mensagens pessoais.
O objetivo dessas plataformas é fomentar a comunicação e o relacionamento entre indivíduos e grupos, criando um espaço para expressão pessoal, troca de ideias e engajamento social – em um “mercado de ideias” [5]. Para essa finalidade, em tese, as transações econômicas envolvendo mercadorias não são o foco principal, embora a publicidade e o marketing digital desempenhem um papel significativo na monetização desses ambientes via interação e a atenção dos usuários.
Marketplaces, por sua vez, têm uma funcionalidade bem distinta: são projetados para facilitar transações econômicas entre compradores e vendedores. Portanto, não estruturam e não são curadores do mercado de ideias [6], mas centralizam o processo de compra e venda de bens e serviços, simplificando etapas como o processamento de pagamentos e, em alguns casos, a logística.
O design dessas plataformas visa criar ambiente conveniente e eficiente para transações comerciais, permitindo que vendedores alcancem público amplo e compradores encontrem produtos de diversos fornecedores em um único local, de modo que a experiência do usuário é essencialmente econômico-transacional, focada em aspectos como a seleção de produtos, a avaliação de preços e a conclusão de compras [7].
Responsabilização
Nesse sentido, inclusive, o Marco Civil da Internet acerta ao prever em seus princípios a “responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades” (artigo 3º, inciso VI).
É perceptível, portanto, como diferentes tipos de plataformas introduzem diferentes riscos e ameaças aos direitos dos usuários no ambiente digital. Nos marketplaces, os principais riscos incluem fraudes e questões ligadas à pirataria. Por outro lado, as redes sociais enfrentam desafios significativos relacionados à moderação de conteúdo, como a disseminação de desinformação, discursos de ódio e conteúdo extremista.
A relevância da diferenciação conceitual é tamanha que a União Europeia já o fazia desde a Diretiva de Comércio Eletrônico de 2000 [8], que reflete um momento de início de popularização da internet. Os artigos 12 e 14, que tratam da delimitação de responsabilidade dos intermediários, estabelecem regras de acordo com o tipo de serviço exercido, classificando-os em “simples transporte”, “armazenagem temporária” (caching) e “armazenagem em servidor” (hosting).
Com o passar do tempo, e acima de tudo com o maior grau de diferenciação e especialização da economia digital, o legislador europeu buscou estabelecer um quadro mais detalhado no recém promulgado Digital Services Act. De maneira resumida, o novo regulamento, além das categorias já previstas na Diretiva do Comércio Eletrônico, define regras específicas às plataformas online (art. 3º, i) e aos motores de busca online (artigo 3º, j). Desse modo, as disposições passam a ser modeladas a partir dessa diferenciação conceitual, reconhecendo e abordando as peculiaridades e impactos de cada modelo de negócios e evitando obrigações desproporcionais e descabidas.
Se partirmos do exemplo regulatório europeu, portanto, podemos dizer que sempre houve uma preocupação em não tratar a economia digital de forma monolítica, mas sim de modo a distinguir os modelos de negócios e atribuir-lhes diferentes regimes.
Também o sistema jurídico britânico faz a distinção de forma clara. De acordo com o Manual Digital Services Tax de 2020, que regula a tributação de serviços digitais, marketplaces são definidos como: “serviços online que fornecem um mercado online para bens, serviços e outras propriedades, conectando usuários que procuram algo com outros usuários que estão dispostos a fornecê-lo”. Já as redes sociais são conceituadas como modelos de negócios que têm o engajamento dos usuários como aspecto central da sua geração de valor. Ou seja, as redes sociais devem ter como objetivo principal — ou um dos objetivos principais — a promoção da interação entre os usuários (incluindo a interação entre os usuários e o conteúdo gerado pelo usuário), assim como devem disponibilizar o conteúdo gerado pelos usuários para outros usuários.
Em resposta a este nítido quadro de diferenciação, o DSA estabeleceu regras específicas para os marketplaces, a fim de que essas plataformas combatam o comércio produtos falsificados e garantam que os direitos dos consumidores sejam protegidos em transações online, o que inclui requisitos para a verificação de vendedores e a transparência na origem dos produtos vendidos. Já para enfrentar os desafios colocados pelas redes sociais, o regulamento propôs obrigações que se concentram principalmente na transparência e na responsabilidade pelo conteúdo que ali circula.
Dado o papel de tais empresas na formação da opinião pública e na disseminação de informações, o DSA enfatiza a importância de mecanismos robustos de moderação de conteúdo e a obrigação de combater a disseminação de desinformação e conteúdo ilegal. Sobre isso, é fundamental se observar que o regulamento ainda delimitou as categorias de plataformas online e de motores de busca online de muito grande dimensão, os quais, por apresentarem alcance e riscos próprios, demandam atenção e supervisão especiais.
Debates nesse sentido, inclusive, já foram travados no contexto brasileiro. Antes da entrada em vigor do MCI, a jurisprudência brasileira se valia de classificação consolidada pela Ministra Nancy Andrighi no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que identificava a existência de cinco espécies de provedores (intermediários): (i) os de infraestrutura ou backbone, detentores da rede com capacidade de processar grandes quantidades de informação; (ii) os de acesso, que adquirem estrutura dos de backbone para revender ao consumidor; (iii) os de hospedagem, que armazenam dados de terceiros; (iv) os de informação, que produzem informações divulgadas online, e (v) os de conteúdo, que disponibilizam na rede as informações criadas ou desenvolvidas por provedores de informação [9].
O Superior Tribunal de Justiça já compreendia a distinção entre os intermediários online e com base nela aplicava conjunto específico de direitos e obrigações. Por exemplo: a Corte determinou a inexistência de dever de averiguação da origem de todos os produtos que são colocados à venda por terceiros, mas intermediados por provedores online, uma vez que tal agir estaria além da atividade intrínseca ao serviço de intermediação, o que não lhes retiraria o dever de disponibilizar instrumentos para que o consumidor possa interromper a negociação, caso desconfie da higidez do produto [10].
Se hoje as discussões sobre a aplicação e a própria constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet dizem respeito à responsabilidade dos provedores de aplicação de internet, um importante passo a ser dado é, antes de tudo, definir quais provedores devem de fato ser regulados, ou melhor, objeto da decisão em questão. Ou seja, regular o princípio da responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades e em que medida cada provedor deve ser objeto de determinadas obrigações, acima de tudo com base nos riscos concretos e estrutura do próprio modelo de negócio.
O risco que se corre hoje com o julgamento do artigo 19 no STF é o de que o Tribunal mire na justa proteção da integridade da informação do mercado de ideias sob curadoria das redes sociais, mas acabe impactando negativamente em indivíduos que utilizam plataformas de comércio eletrônico — quer como espaços de empreendedorismo, quer como alternativa para compras e transações cotidianas —, justamente em razão da indiferenciação conceitual sobre “provedores de aplicações”.
Um dos desafios para a corte no julgamento das ações sobre o MCI reside, assim, em interpretar e aplicar a Lei de forma que reconheça as especificidades e os modelos de negócios emergentes no ambiente digital, responsabilizando os agentes de acordo com suas atividades. Se considerar experiências internacionais como a do DSA, o STF tem ainda a oportunidade de sinalizar ao legislador nacional um horizonte conceitual que promova uma diferenciação mais precisa entre os diversos tipos de provedores de aplicação.
Afinal, a atuação do Poder Judiciário pode e deve servir de baliza para ações do Congresso [11], estimulando a criação de horizontes legislativos que reflitam as complexidades e as evoluções do ambiente digital, beneficiando a sociedade de maneira geral e promovendo um debate legislativo mais informado e eficaz.
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[1] Sobre o tema ver Ricardo Campos, Metamorfoses do Direito Global. Sobre a Interação entre Direito, Tempo e Tecnologia. Editora Contracorrente, Sao Paulo 2022, p. 255 e ss.
[2] V – conexão à internet: a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP.
[3] VII – aplicações de internet: o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet.
[4] Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os intermediários online podem ser definidos como aqueles que: “aproximam ou facilitam transações entre terceiros na internet. Eles proveem acesso, hospedam, transmitem e indexam conteúdos, produtos e serviços de terceiros na internet ou proveem serviços baseados na internet para terceiros.” PERSET, Karine. The economic and social role of internet intermediaries. Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, 2010, p. 09.
[5] Sobre o tema do conceito “market place of ideias” ver: Shiffrin, Steven H. The First Amendment, Democracy, and Romance. Princeton: Princeton University Press, 1990. Ingber, Stanley. “The Marketplace of Ideas: A Legitimatizing Myth.” Duke Law Journal (1984): 1 – 91.
[6] Sobre o conceito de curadoria da esfera pública, ver VESTING, Thomas; CAMPOS, Ricardo. Curadoria de conteúdo: regulação de mídias para o século XXI. In: CAMPOS, R. O futuro da regulação de plataformas digitais. Digital Services Act (DSA), Digital Markets Act (DMA) e seus impactos no Brasil*. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 37 – 66.
[7] Os marketplaces possuem ainda forte impacto social positivo em prol de milhares de pequenas e médias empresas que não pode ser menosprezado. Na América Latina, por exemplo, para quase 2.000.000,00 famílias um intermediário como o Mercado Livre representa a sua principal fonte de renda. Relatório de Impacto Ambiental 2023. Disponível em https://meli-sustentabilidad-bucket.s3.amazonaws.com/MELI_2023_POR_26e9d74b05.pdf. Acesso em: 28 jun. 2024.
[8] Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 08.06.2000.
[9] REsp 1193764/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/12/2010, DJe 08/08/2011.
[10] REsp. nº 1.383.354/SP, Terceira Turma, Min. Nancy Andrihi, j. 27.08.2013
[11] Variados são os exemplos de atuação do STF reconhecendo omissão legislativa, com consequente determinação de elaboração legislativa sanadora. Um exemplo notório foi a aplicação ao funcionalismo público das normas de direito de greve do setor privado até que o Congresso editasse legislação específica. Em tempos recentes o STF reconheceu omissão legislativa na regulamentação do direito à licença-paternidade, conferindo prazo de 18 meses para o Congresso Nacional editar a legislação pertinente, sob pena de nova manifestação da Corte definindo o prazo da licença. Da mesma forma, descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal, fixando o mesmo prazo de 18 meses para que o Congresso defina a quantidade máxima da substância que um usuário poderá portar sem que haja tipificação penal.
- Ricardo Camposé docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität, especialista em regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório, ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022), membro da Comissão de Juristas de Reforma do Código Civil brasileiro, coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional, diretor do Legal Grounds Institute, consultor jurídico e parecerista.
- Rony Vainzofé sócio-fundador do VLK Advogados.