União Europeia estabelece regras mais rígidas para operações da Shein

Por Carolina Xavier Santos, Maria Gabriela Grings e Samuel Rodrigues de Oliveira

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico (Conjur)

Conhecida e querida de milhões de brasileiros, a Shein é uma varejista chinesa online, com uma média de mais de 28 milhões de usuários mensais no Brasil [1]. Na Europa, esse número recentemente chegou a 45 milhões, levando a Comissão Europeia, no dia 26 de abril, a designá-la formalmente como uma “plataforma online de grande porte (ou Vlop, do inglês “very large online platform”), nos termos do Digital Services Act (DSA).

O DSA é uma das mais recentes legislações da União Europeia para regulação de plataformas digitais e uma das grandes apostas do continente para o novo cenário digital, em que número cada vez maior de interações sociais e comerciais (envolvendo bens e serviços) se desenvolvem por meio da Internet.

O DSA tem como objetivo geral criar um ambiente online mais seguro para os usuários, definir responsabilidades claras para as plataformas que atuam online, além de enfrentar desafios inerentes a esse ambiente, como a venda de produtos ilegais, discursos de ódio e calcados em desinformação. Por isso, estabelece novas regras para as plataformas, de acordo com o seu tamanho em termos de números de usuário, mas também fixando deveres de transparência e sujeição às autoridades locais e ao recém-criado Comitê Europeu de Serviços Digitais para todas.

A caracterização da Shein como uma Vlop — isto é, uma plataforma que possui mais de 10% dos 450 milhões de consumidores europeus como usuários — pode até ser surpreendente, já que a classificação é usualmente vislumbrada como incidente para as grandes redes sociais (como Facebook, TikTok etc.) e o maior buscador global, o Google, sem referência a uma rede varejista de roupas, calçados e produtos de consumo em geral.

Todavia, além de preencher o requisito quantitativo, a Shein está sujeita às normas do DSA por outro motivo, menos discutido nos debates brasileiros sobre o assunto. Isso porque uma das metas do DSA é a prevenção à divulgação de conteúdos ilícitos, o que abarca não apenas aqueles que atinjam direitos fundamentais de terceiros, como honra e privacidade, mas também a oferta de produtos em desconformidade com os parâmetros legais locais, o que abrange produtos falsificados ou nocivos [2].

As Vlops possuem obrigações adicionais em comparação com as outras modalidades de plataformas: devem avaliar e adotar medidas de diminuição de riscos sistêmicos relacionados a conteúdos ilegais, violação de direitos fundamentais, segurança pública e processos eleitorais, violência de gênero, saúde pública, proteção de menores e bem-estar físico.

Da mesma forma, deverão se submeter a auditorias externas independentes anuais, compartilhar os dados apurados com as autoridades locais e o Comitê Europeu e publiquem relatórios semestrais de transparência.

Assim, após sua designação como uma Vlop, a Shein terá que cumprir as regras mais rigorosas estabelecidas no DSA a partir de de quatro meses após sua notificação, ou seja, até o final de agosto deste ano. Essas obrigações adicionais se dividem em três eixos principais: maior vigilância quanto à comercialização de produtos ilegais, maiores medidas de proteção ao consumidor e novas medidas de transparência e accountability quanto à moderação do conteúdo postado em sua plataforma.

No que diz respeito à maior diligência sobre produtos ilegais, a gigante do comércio eletrônico terá que analisar os riscos sistêmicos [3] específicos relacionados à disseminação de conteúdo e produtos ilegais e decorrentes do design ou funcionamento de seu serviço e seus sistemas relacionados. A Shein deverá também implementar medidas de mitigação para abordar riscos, como a listagem e venda de mercadorias falsificadas, produtos inseguros e itens que infringem direitos de propriedade intelectual.

Tais medidas podem incluir a adaptação dos termos de serviço, aprimoramento do design da interface do usuário para melhorar a denúncia e detecção de listagens suspeitas, melhoria dos processos de moderação para remover rapidamente itens ilegais e refinamento de seus algoritmos para evitar a promoção e venda de produtos proibidos.

Os processos internos, testes, procedimentos de documentação e supervisão de quaisquer atividades vinculadas à detecção de riscos dentro da plataforma também deverão ser melhorados. Tudo isso deverá ser comprovado por meio do envio de relatórios à Comissão Europeia — primeiro, dentro de quatro meses após a notificação da designação formal. E, a partir daí, anualmente.

Além disso, os relatórios anuais de avaliação de riscos da Shein devem analisar especificamente quaisquer potenciais efeitos adversos à saúde e à segurança dos consumidores, com ênfase no bem-estar físico e mental de usuários menores de idade. A plataforma — incluindo interfaces de usuário, algoritmos de recomendação e termos de serviço — deverá ser estruturada de modo a mitigar e prevenir riscos à segurança e bem-estar das pessoas, incluindo medidas para proteger os consumidores de adquirir produtos inseguros ou ilegais, com foco especial em prevenir a venda e distribuição de produtos que possam ser prejudiciais a menores. Especificamente neste ponto, é recomendado que haja a a incorporação de sistemas eficientes de confirmação de idade para impedir a compra de itens que possuam algum tipo de restrição etária.

Finalmente, devido às regras de transparência e responsabilidade atribuídas às VLOps, a Shein precisará garantir que suas avaliações de risco e conformidade passem por auditorias externas e independentes, o que deve ocorrer anualmente. Já os relatórios de transparência sobre decisões de moderação de conteúdo e gestão de riscos deverão ser publicados a cada seis meses. Além disso, a empresa deverá manter um repositório de todos os anúncios veiculados em sua interface, bem como garantir acesso a dados publicamente disponíveis a pesquisadores, incluindo pesquisadores avaliados designados pelos coordenadores de serviços digitais da União Europeia.

Regulação de tecnologias

Nos últimos anos, a União Europeia tem se sobressaído na corrida pela regulação de novas tecnologias, sobretudo das plataformas digitais, tendo aprovado legislações que vão desde o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), em 2016, até o recente pacote regulatório do qual são parte o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA). Ao fazê-lo, o bloco tem também, na prática, fixado o critério regulatório global adotado pelas empresas que atuam no ambiente online.

Isso ocorre devido ao chamado “efeito Bruxelas”, que, como ensinou Anu Bradford, refere-se a uma espécie de exportação dos standards de proteção da UE a outras jurisdições por meio de forças de mercado [4]. E assim como tal fenômeno influenciou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil, o DSA tem servido de forte inspiração para relevantes projetos nacionais, como o PL 2.630/2020 e a proposta de reforma do novo Código Civil, ambas trazendo maiores obrigações aos provedores de serviços online.

Diante disso, enquanto não haja um regramento nacional específico a respeito das responsabilidades e obrigações desses atores, é de se esperar que a definição da Shein como plataforma online de grande porte no contexto europeu impacte, ainda que indiretamente, o mercado e o usuário brasileiros, elevando o standard de proteção não só em relação a eventual conteúdo ilegal e a moderação deste conteúdo, mas, principalmente, em relação à comercialização de produtos ilegais ou nocivos ao consumidor.


[1] Shein domina audiência digital de moda no Brasil | Blogs CNN. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/debora-oliveira/economia/shein-domina-audiencia-digital-de-moda-no-brasil/>. Acesso em: 26 abr. 2024.

[2]   A definição de conteúdo ilegal adotada no DSA denota a abrangência do conceito: “«Conteúdo ilegal», qualquer informação que, por si só ou em relação a uma atividade, incluindo a venda de produtos ou a prestação de serviços, não esteja em conformidade com o direito da União ou com o direito de qualquer Estado-Membro que esteja em conformidade com o direito da União, independentemente do objeto preciso ou da natureza dessa lei” (Art. 3(h)) (tradução nossa)

[3] Riscos sistêmicos são riscos que riscos sistêmicos que decorrem do modelo de negócios das plataformas online de muito grande dimensão O DSA prevê quatro categorias de riscos sistêmicos: a “primeira relaciona-se com os riscos associados à difusão de conteúdos ilegais (como o discurso de ódio) e à realização de atividades ilegais (e.g., o comércio ilegal de animais) — ilegalidade essa que, nos termos do artigo 3(h) do DSA, deverá ser avaliada com base nos parâmetros oferecidos pelo direito da União ou dos estados-membros. A segunda categoria diz respeito aos impactos reais ou previsíveis do serviço no exercício de direitos fundamentais protegidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que incluem, por exemplo, o direito à dignidade humana, o direito à vida privada, os direitos da criança e a liberdade de expressão. A terceira, por sua vez, diz respeito aos efeitos negativos em processos democráticos, no discurso cívico, em processos eleitorais e na segurança pública. Por fim, a quarta categoria volta-se a preocupações com impactos negativos na proteção da saúde pública, dos menores de idade, e do bem-estar físico e mental em matéria de violência de gênero.”. Cf.: CAMPOS, R.; SANTOS, C. X.; OLIVEIRA, S. R. Riscos sistêmicos no DSA e suas lições para o Brasil. CONJUR. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/direito-digital-riscos-sistemicos-dsa-licoes-brasil/>. Acesso em: 26 abr. 2024.

[4] BRADFORD, A. The Brussels Effect: How the European Union Rules the World. Oxford University Press, 2020.

Sobre o autor
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Samuel Oliveira

Coordenador do Legal Grounds Institute. Doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre em Direito e Inovação e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (SP). Especialista em Relações Internacionais. Pesquisador no Núcleo Legalité da PUC-Rio. Advogado.
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Coordenador do Legal Grounds Institute. Doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre em Direito e Inovação e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (SP). Especialista em Relações Internacionais. Pesquisador no Núcleo Legalité da PUC-Rio. Advogado.

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