Uso das redes de telecomunicações e futuro digital da América Latina

Brasil lidera o debate regulatório na América Latina, enquanto países vizinhos, como Colômbia e Peru, buscam soluções próprias para desafios tecnológicos internos.

Por Carolina Xavier

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico (Conjur)

A revolução digital tem causado diversas transformações sociais, econômicas e políticas ao redor do mundo. A expansão do acesso à internet e a dispositivos conectados criou novas formas de se relacionar, de trabalhar, de realizar transações comerciais e de consumir entretenimento.

Setores inteiros, como a indústria, a saúde, a educação e a própria prestação de serviços públicos têm encontrado na adoção de tecnologias de informação e comunicação respostas a questões enfrentadas há séculos. Novos setores e modelos de negócios têm se desenvolvido, oferecendo ferramentas e serviços que têm a internet como sua principal plataforma.

Essa penetração da virtualidade em todos os setores da sociedade tem também apresentado efeitos profundos na infraestrutura de telecomunicações, responsável por transportar o tráfego de dados ao usuário final de forma eficiente, evitando congestionamentos e assegurando a qualidade de conexão.

Isso significa que, cada vez mais, é fundamental voltarmos o olhar para o funcionamento dessa infraestrutura, para que ela continue sendo capaz de suportar todos os presentes e futuros avanços da transformação digital. É o que tem feito a União Europeia, por exemplo, ao incluir a segurança e a sustentabilidade das infraestruturas digitais como uma das vertentes do seu Programa Década Digital para 2030.

Atento a esse cenário, o Legal Grounds Institute lançou, no dia 23 de setembro, o Núcleo Sustentabilidade Digital e Infraestrutura: uma perspectiva comparada, com o objetivo de fomentar o debate público brasileiro a respeito do tema e de reunir um arcabouço teórico e prático que seja útil para guiar e informar discussões e decisões no contexto nacional.

Além de uma página, no site do instituto, dedicada a esse fim, deu-se início também uma série de eventos que, ao longo dos próximos meses, terá como convidados diversos atores relevantes no cenário nacional e internacional para que compartilhem pesquisas, dados e experiências voltadas à relação entre as redes de telecomunicações e os processos de digitalização.

Volume e concentração de tráfego

O primeiro evento recebeu Lucas Gallitto, head da GSMA para a América Latina, que apresentou dados inéditos sobre o uso das redes na região a serem publicados em breve na forma de um relatório elaborado pela organização. Destaque merece ser dado a dois pontos principais. O primeiro diz respeito ao tráfego móvel, cujo histórico dos últimos anos bem como sua projeção revelam crescimento absoluto.

A cada ano, o volume de tráfego é maior que o anterior: de 2016 até 2023, houve um incremento de 53 exabytes [1] e a projeção é que de 2023 a 2023 o incremento seja de 133 exabytes. Os dados somam-se àqueles já anteriormente conhecidos em relação ao contexto global e europeu [2] e refletem a aceleração da transformação digital dos últimos anos.

O segundo dado relevante destaca que apenas três companhias concentram 70% de todo o tráfego móvel da América Latina: a Meta, em primeiro lugar, via seus aplicativos de mensageria e rede social, gera 49% do tráfego; a Alphabet (Google) gera 14% e o Tiktok gera 8%. Os números são impressionantes e aprofundam os dados relativos ao contexto global: como demonstra o Global Internet Phenomena de 2024, da Sandvine, são seis as “supergigantes” responsáveis por 66% do tráfego de dados móveis mundial.

De toda forma, o que se observa é um uso intensivo das redes por poucas gigantes da tecnologia que, hoje, não recebem os incentivos adequados para fazê-lo de forma diferente. Nesse sentido, vale lembrar, ainda, que grande parte desse tráfego não é fruto da simples escolha do usuário acerca de qual conteúdo ou aplicação acessar.

Conteúdo, sustentabilidade e financiamento

De acordo com Lucas Gallitto em referência a um estudo publicado por pesquisadores da Universidade de Braga, até 30% desse tráfego pode ser composto por conteúdo não solicitado [3] — caso de banners publicitários e vídeos de reprodução automática, que consomem recursos de rede para além do necessário ao adequado funcionamento dos serviços digitais.

Todos esses dados revelam um claro cenário de desequilíbrio, com consequências para a sustentabilidade da infraestrutura e, por consequência, para toda a sociedade. Não basta que sejam realizados vultuosos investimentos na atualização e na expansão das redes — como tem ocorrido nos últimos anos — mas é também fundamental que esse limitado recurso seja utilizado de forma eficiente. Esta é, inclusive, uma das obrigações dos usuários brasileiros de serviços de telecomunicações, conforme artigo 4º, I, da LGT.

Para isso, na esteira das recentes discussões sobre o chamado fair share, Gallitto propõe a revisão do atual modelo de financiamento das redes, que, hoje, recai exclusivamente sobre as empresas operadoras de telecomunicações (e sobre os usuários finais, de forma indireta).

Para ele, é fundamental que o setor, assim como as provedoras de conteúdo e aplicações, possa explorar adequadamente os dois lados de seu mercado [4]: de um lado, por meio da venda de conexão à internet aos usuários finais e, de outro, por meio do recebimento de contribuições das Caps (content and application providers) pela transmissão do conteúdo.

Esse novo modelo teria o benefício de incentivar o uso eficiente das redes e de reequilibrar as relações entre a infraestrutura de telecomunicações regulada pelo Estado e os serviços digitais privados e desregulados, prestados por empresas estrangeiras, ofertados sobre a referida infraestrutura.

Cenário latino-americano

Como ensina Gallitto a partir de sua experiência e contato direto com reguladores latino-americanos, já existiria um reconhecimento geral do estado atual da situação aqui colocada e da necessidade de análises e reações adequadas.

Apesar de o Brasil ter iniciado o debate na região a partir das tomadas de subsídios e consultas públicas lançadas pela Anatel e pelo Ministério da Fazenda ao longo de 2023 e 2024, outros países, como Colômbia e Peru, também já estariam se movimentando, a fim de, a partir de suas próprias estruturas e ferramentas, encontrar soluções inovadoras moldadas para responder a suas próprias necessidades internas.

Sem dúvidas, pode-se notar uma posição ativa da América Latina, que tem buscado lidar com seus próprios desafios na garantia de um futuro digital que assegure benefícios a todos. E neste contexto, o Brasil está diante de uma oportunidade de, mais uma vez, exercer seu papel de liderança na região e no mundo e de guiar os rumos da revolução digital.


[1] Um exabyte equivale a aproximadamente um bilhão de gigabytes (GB).

[2] Cf., por exemplo, os relatórios Global Internet Phenomena Report da Sandvine, bem como outros relatórios da GSMA, como o The Mobile Economy Europe.

[3] SILVA, José Pedro; CARVALHO, Paulo; LIMA, Solange, Characterisation of Unsolicited Traffic Advertisements in Mobile Devices, International Conference on Software, Telecommunications and Computer Networks (SoftCOM), 2020.

[4] Sobre o conceito de mercado de dois lados, cf., por exemplo, ROCHET, Jean-Charles; TIROLE, Jean. Platform competition in two-sided markets. Journal of the european economic association, v. 1, n. 4, 2003, pp. 990-1029.

  • Carolina Xavier Santosé mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa, pesquisadora visitante na Universität Hamburg, pesquisadora no Legal Grounds Institute e advogada.

Sobre o autor
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Legal Grounds Institute

Produzindo estudos sobre políticas públicas para a comunicação social, novas mídias, tecnologias digitais da informação e proteção de dados pessoais, buscando ajudar na construção de uma esfera pública orientada pelos valores da democracia, da liberdade individual, dos direitos humanos e da autodeterminação informacional, em ambiente de mercado pautado pela liberdade de iniciativa e pela inovação.
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