Matéria publicada no portal IREE por Samantha Maia.
Evento do IREE reuniu autoridades e representantes de empresas e da sociedade civil para debater as propostas do chamado fair share, que visam incluir as plataformas digitais nos custos de atualização e manutenção das redes, hoje responsabilidade das companhias de telecomunicação. Consultas públicas sobre o tema estão em andamento na União Europeia e no Brasil, no âmbito da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), mas o tema está longe de chegar a um consenso. Enquanto as empresas de telecom defendem não ser sustentável continuarem a financiar a estrutura de rede sozinhas, analistas apontam para o risco de uma mudança de regulação do setor criar distorções e refletir em mais custos para o consumidor.
Ao abrir o evento, o Presidente do IREE, Walfrido Warde, abordou a importância do Direito refletir sobre o mercado digital e suas necessidades em constante transformação. “A inovação tecnológica exige não só infraestrutura digital, mas sobretudo infraestrutura jurídica. Esse evento trata de como a sociedade da informação requer que o Direito também pense e se adapte rapidamente a novas realidades”, afirmou Warde.
O organizador do evento Ricardo Campos, Professor da Goethe Universität Frankfurt am Main, destacou que aquele seria apenas o primeiro de vários debates a serem realizados sobre o assunto. “A discussão sobre o fair share surge na Europa, é um tema novo e o Brasil tem a oportunidade de participar do debate global. Estamos em um momento de construção jurídica que também toca questões de política pública”, disse Campos.
Na conferência de abertura, o Presidente da ANATEL, Carlos Manuel Baigorri, chamou atenção para o fato de que a terminologia utilizada já sinaliza uma narrativa. “Quando se fala em fair share [participação justa], já se traz a ideia de que o sistema que está hoje é unfair [injusto]. Vou tentar não me ater a terminologias e me atentar a fatos”, ponderou.
Segundo Baigorri, a Anatel abriu chamada pública sobre o assunto por considerá-lo relevante, mas ainda não tem uma posição definida. Para ele, o crescimento acentuado das plataformas digitais, e o consequente ganho de poder dessas empresas, tem gerado incômodo tanto à sociedade, quanto às companhias de telecomunicação, a ponto de quebrar o equilíbrio do ecossistema digital.
“Como encontrar um novo equilíbrio? É preciso olhar o ecossistema como um todo. Não estou falando que tem que cobrar por tráfego de internet, mas se não se permite que um agente repasse seu custo para o consumidor, ele vai ter que repassar para outro agente da cadeia”, disse o Presidente da Anatel.
Bianca Mollicone, Coordenadora do Legal Grounds Institute, destacou que não se trata apenas de uma questão econômica das empresas, mas também tem a ver com uma garantia de acesso da população aos serviços e à qualidade do sistema.
Confira abaixo os destaques do painel sobre “Os contornos do debate em torno do fair share“. Participaram como debatedores José Félix, Presidente da Claro Brasil, Camilla Tapias, vice-Presidente da Telefônica Vivo, Paula Bernardi, Assessora Sênior de Políticas e Advocacy da Internet Society, Artur Coimbra de Oliveira, Conselheiro da ANATEL, e Cleveland Prates, Professor da FGV e ex-conselheiro do CADE. Alexandre Freire, Conselheiro da ANATEL, e Maria Gabriela Grings, Coordenadora do Legal Grounds Institute, mediaram o debate.
Para telecomunicações, fair share deve corrigir injustiças
Em sua exposição, o Presidente da Claro Brasil, José Félix, afirmou que a falta de retorno financeiro faz com que hoje não seja atrativo investir em telecomunicação no Brasil. Como consequência, as empresas estão sem capacidade de ampliar seus serviços e renovar sua estrutura.
Por outro lado, ele apontou que as grandes plataformas digitais têm sido responsáveis por um crescimento acelerado de tráfego, e têm obtido lucro com isso, sem contribuírem com a infraestrutura que usam para disseminar seus conteúdos. “Deveria se encontrar um modo dessas empresas contribuírem com a implementação de redes”, defendeu o executivo.
Ele também apontou para a impossibilidade de cobrar por tráfego da internet fixa como outra distorção do mercado. Segundo Félix, ao não poder cobrar pelo consumo, quem consome pouco acaba subsidiando os grandes consumidores.
Camilla Tapias, vice-Presidente da Telefônica Vivo, defendeu que o fair share seria importante por entender que, assim como no caso do cartão de crédito, as telecomunicações têm um mercado de dois lados, em que o serviço das operadoras é prestado tanto para os consumidores, quanto para as plataformas digitais, e por isso deveria ser pago por ambos.
“Só os consumidores pagam porque quando esse mercado surgiu, o tráfego era pequeno. Mas a qualidade do ecossistema está sob risco e nós queremos resolver o problema sem impactar os usuários”, disse a executiva. A proposta, segundo ela, é de que as grandes empresas geradoras de tráfego sejam obrigadas a negociar um pagamento, e que a negociação seja livre entre as partes.
Tapias destacou também que existem duas limitações hoje de arrecadação das operadoras. Uma é econômica, uma população que não tem capacidade de arcar com o custo da rede, e outra é regulatória, que proíbe as prestadoras de reduzir velocidade e cobrar pelo tráfego quando acaba a franquia. “O problema está bem delineado, temos uma insuficiência de retorno econômico das prestadoras para arcarem com esse tráfego que está sendo gerado.”
Analistas veem as propostas de fair share com preocupação
Segundo Paula Bernardi, Assessora Sênior de Políticas e Advocacy da Internet Society, uma organização global que atua pela internet aberta e segura, as propostas de fair share seriam desastrosas por irem contra o sentido da internet ser uma rede única e global. “Hoje tudo o que se precisa é ter acesso a uma rede que garante conexão com todos os pontos finais, e só precisa de um contrato para ter acesso a todas as redes. O fair share mudaria esse contexto”, disse a assessora.
Bernardi explicou que o entendimento da Internet Society é de que os usuários são os geradores de tráfego e as grandes empresas de tecnologia pagam pela capacidade de enviar os dados. “Se taxas forem impostas, elas também serão repassadas para os usuários, o que pode resultar em uma taxa mais alta de serviço de streaming.” Sobre o argumento de que o crescimento do tráfego das plataformas digitais gera custo, Bernardi contestou que o pico de tráfego relativo não afeta diretamente o investimento em infraestrutura realizado para gerenciar o pico do tráfego.
Para Artur Coimbra de Oliveira, Conselheiro da ANATEL, o fair share é uma pretensa solução para um suposto problema. “Ainda estamos estudando e existem muitas questões em aberto, uma que talvez tenha papel chave é se trata-se de uma questão de poder de barganha ou de poder de mercado”, disse.
O conselheiro falou sobre como o mercado de acesso à internet mudou ao longo dos anos. As transformações derrubaram o custo de armazenamento e alteraram a dinâmica de produção e acesso ao conteúdo. “O contrato de trânsito continua existindo, o que precisa é ver como faz para a infraestrutura ficar sustentável”, afirmou. Segundo ele, sempre o melhor caminho será uma solução privada, em que as empresas sentem e conversem.
Para o professor da FGV Cleveland Prates, é preciso cautela ao se pensar a regulação de um fair share. O ponto central do debate, segundo ele, é o financiamento de rede, e os dois lados, operadoras e plataformas, têm espaço para uma barganha bilateral sem interferência de regulador. “O que temos aqui é possibilidade de uma solução cooperativa. Regular têm custos públicos e privados, pode gerar incentivos ruins, e há o risco de gerar uma falha de Estado pior do que falha de mercado que se quer corrigir”, disse.
Prates acredita que a melhor forma de encontrar soluções para custear a rede é estimular, e não obrigar, que as partes conversem. “O mais importante é corrigir uma distorção regulatória de que a empresa não pode discriminar preço por dados. É preciso racionalizar o uso dessa rede, pois consumidores que utilizam pouco a rede estão pagando mais caro para que os que usam muito paguem mais barato”, afirmou.
O professor da FGV defendeu também que cobrar de acordo com o uso pode regular o preço do mercado de forma mais eficiente e levar as plataformas a colaborar com as operadoras. “As empresas vão descobrir que têm muito mais a ganhar trabalhando em conjunto, melhorando o uso dessa rede e criando uma estrutura que mais usuários utilizem.” Segundo Prates, o papel do regulador é pensar no bem estar do consumidor e no retorno razoável das empresas, além de estimular investimentos em tecnologias, a universalização dos serviços e o atendimento da baixa renda. “Quem gera tráfego é o usuário, e se a operadora começa a cobrar também da plataforma, o preço vai se refletir para os consumidores dessas plataformas.”