Digitalização da saúde: o receituário eletrônico alemão

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Publicado originalmente no Jota.

Abordagem alemã busca combinar proteção de dados com inovação e simplificação de serviços nas receitas médicas.

Desde o dia 1º de janeiro de 2024, o uso das receitas eletrônicas tornou-se obrigatório na Alemanha[1]. Trata-se de mais uma etapa do processo de implementação da tecnologia, que teve início em meados de 2020, com a aprovação, pelo Bundestag, da Patientendaten-Schutz-Gesetz – PDSG (Lei de Proteção de Dados dos Pacientes, em tradução livre). A lei estabelece as bases legais para o novo modelo de receituário médico, ao mesmo tempo em que impõe obrigações às instituições de saúde quanto à
minimização dos riscos à disponibilidade, integridade e confidencialidade dos dados dos pacientes. A partir disso, nos últimos anos, diversos testes foram realizados em cada uma das etapas do uso da receita eletrônica, com uma implementação gradual a partir de setembro de 2022. Ainda que de forma tardia em relação a outros países europeus[2], a Alemanha dá mais um passo rumo à transformação digital,
buscando garantir mais segurança, redução nas fraudes, maior participação do paciente e a simplificação e racionalização geral dos processos relativos à saúde dos pacientes.

A título ilustrativo, agora receitas podem ser facilmente emitidas após teleconsultas. Já receitas de acompanhamento podem ser obtidas sem uma nova visita ao médico. A PDSG também estabeleceu que, a partir de 2021, fornecedores de seguros de saúde estariam obrigados a oferecer aos seus clientes os seus “registros eletrônicos” – elektronische Patientenakte (ePA), que deverão, com o consentimento e a depender da escolha do paciente, reunir, de forma centralizada, diversas informações de saúde até então registradas apenas em papel.


O ePA pode incluir informações como o plano de medicação do paciente, o que significa que, quando utilizado em conjunto com as prescrições eletrônicas, pode ajudar no controle dos medicamentos e na identificação de possíveis interações, promovendo maior segurança no tratamento. Parte fundamental dessa inovação tecnológica é a infraestrutura telemática (TI), que, em 2019, passou a ser obrigatória a quase todo o setor de saúde[3], abarcando a comunicação e transmissão de informações entre hospitais,
consultórios, farmácias e outros prestadores de serviços. A TI é mantida pela Gematik (Nationale Agentur für Digitale Medizin), empresa fundada por diversas organizações de saúde com o objetivo de desenvolver padrões e especificações técnicas para componentes e serviços de TI, com foco
na segurança e a interoperabilidade. Hoje, constitui a infraestrutura central que permite o funcionamento do sistema de prescrições eletrônicas. Na prática, a receita é criada digitalmente por um médico em seu sistema (Praxisverwaltungssystem), assinada e armazenada na TI. O paciente, então, poderá resgatá-la na farmácia de sua escolha, de três formas distintas. A primeira é por meio do cartão de saúde eletrônico (elektronische Gesundheitskarte, eGK), que pode ser inserido em leitores de cartões disponibilizados nas farmácias, permitindo que o farmacêutico acesse a receita de forma direta e simplificada.
A segunda se dá através de um aplicativo gratuito, o Das E-Rezept, pelo qual a prescrição pode ser enviada diretamente para a farmácia desejada. Nesse caso, o paciente precisa ter o eGK e um PIN habilitado para se registrar no aplicativo, que ainda oferece funcionalidades como a visão geral completa das receitas emitidas nos últimos cem dias ou a possibilidade de encomendar medicamentos nas
farmácias de forma online. Por fim, na terceira, o consultório médico entrega ao paciente um papel impresso com dados de acesso necessários para resgatar a receita, que deverão ser levados à farmácia escolhida.

Uma das grandes preocupações da Alemanha com o novo sistema foi a proteção e a segurança dos dados envolvidos nas transações – o que, inclusive, é considerado um dos motivos para o significativo atraso no processo de digitalização do tema no país[4]. As prescrições eletrônicas são criptografadas
várias vezes na TI e médicos e farmácias precisam de hardwares de segurança específicos, certificados e credenciados pelo Estado, bem como cartões de identificação eletrônicos para acessar o servidor[5].
Além disso, a farmácia só consegue acessar a prescrição caso receba autorização do paciente, seja por meio do cartão de saúde ou pelo aplicativo, seja pelo recebimento das chaves em forma de papel impresso. Também foi definido um prazo para o armazenamento das receitas eletrônicas: no caso daquelas que forem resgadas, o prazo é de 100 dias; no caso das não resgatadas, serão
automaticamente excluídas 10 dias após seu vencimento[6]. Logo no primeiro mês deste ano, cerca de 12 milhões de receitas eletrônicas foram emitidas apenas nos sistemas da CompuGroup Medical (CGM) – número maior do que o relativo ao período entre julho de 2021 e o início de dezembro de
2023[7] – revelando o saldo até então positivo da introdução abrangente das
prescrições eletrônicas.


É importante lembrar, contudo, que esse foi apenas mais um passo de um longo processo, que tem como objetivo final que todos os medicamentos sejam, em breve, prescritos eletronicamente, inclusive narcóticos, cuja previsão de resgate pelo eRezept é o dia 1º de julho de 2025. Para fortalecer e impulsionar o processo de implementação nacional da prescrição eletrônica, o Parlamento alemão aprovou recentemente a DigitalGesetz, ou DigiG[8]. A Lei traz, dentre outras novidades, avanços em relação ao registro eletrônico do paciente (ePA) para todos os cidadãos, com a previsão de um procedimento favorável aos indivíduos no caso de opt-out, a fim de promover o intercâmbio e o uso de dados de saúde e apoiar os cuidados prestados.
Uma das preocupações é justamente integrá-los às receitas eletrônicas. A ideia é que, no futuro, o processo de prescrição seja respaldado por informações sobre alergias, intolerâncias, gravidezes etc., a fim de garantir maior segurança ao paciente. Pioneira na proteção de dados na Europa e internacionalmente, a abordagem alemã busca combinar segurança e proteção dos direitos individuais
com inovação e simplificação de procedimentos através da digitalização. Sem dúvidas, esse caminho é uma importante inspiração para o Brasil ao debater a digitalização da saúde em nosso país.


[1]
Apesar da recente obrigatoriedade, há, ainda, alguma tolerância no caso de razões
técnicas, situação em que ainda se aceita a receita de papel até então utilizada, sem
prejuízos ao fornecimento de medicamentos ao paciente.
[2]
GALL, Walter, The national e-medication approaches in Germany, Switzerland and Austria: A
structured comparison, International Journal of Medical Informatics, 93, 2016.
[3]
Inovação trazida pela “Lei para melhoria da prestação de serviços de saúde através da
digitalização e inovação” (Gesetz für eine bessere Versorgung durch Digitalisierung-Gesetz –
DVG),
[4]
NEUBERT, Kjeld, Germany embraces digital prescriptions, yet European integration lingers,
Euractiv, jan. 2024, disponível em: https://www.euractiv.com/section/healthconsumers/news/germany-embraces-digital-prescriptions-yet-european-integrationlingers/ (acesso em 26.02.24).
[5]
Das eRezept: Die Apotheke vor Ort auf dem Weg zum papierlosen Rezept, disponível em:
https://die-digitale-apotheke.de/wissen/e-rezept/#TIAnschlussfürdieApotheke (acesso em
26.02.24).
[6]
Gematik, disponível em: https://www.das-e-rezept-fuer-deutschland.de/faq/faqdetail/wie-lange-werden-e-rezepte-gespeichert-2 (acesso em 26.02.24).
[7]
E-prescriptions new standard in Germany: CGM with positive interim assessment, jan.
2024, disponível em: https://www.cgm.com/corp_en/magazine/articles/pressreleases/2024/e-rezept-neuer-standard-cgm-zieht-positive-zwischenbilanz.html (acesso
em 26.02.2024).
[8]
BUNDESMINISTERIUM FÜR GESUNDHEIT, Gesetz zur Beschleunigung der Digitalisierung
des Gesundheitswesens, disponível em:
https://www.bundesgesundheitsministerium.de/ministerium/gesetze-undverordnungen/guv-20-lp/digig#:~:text=Das%20Digital%2DGesetz%20soll%20den,Patientenakte%20(%20ePA%20)
%20für%20alle. (acesso em 26.04.24).

Sobre o autor
Legal Grounds Institute

Legal Grounds Institute

Produzindo estudos sobre políticas públicas para a comunicação social, novas mídias, tecnologias digitais da informação e proteção de dados pessoais, buscando ajudar na construção de uma esfera pública orientada pelos valores da democracia, da liberdade individual, dos direitos humanos e da autodeterminação informacional, em ambiente de mercado pautado pela liberdade de iniciativa e pela inovação.
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