Atualização do Código Civil como oportunidade para codificação dos neurodireitos

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Por Humberto Fazano e Amanda Smith Martins

Publicado originalmente no Conjur.

Em dezembro de 2023, o cenário jurídico brasileiro foi marcado pela divulgação do parecer nº 1, originado da atuação da subcomissão de Direito Digital, integrada ao conjunto de juristas encarregados de promover a revisão e aprimoramento do Código Civil.

Este documento, emerge como fruto de um robusto diálogo entre acadêmicos e representantes da sociedade civil, culminando em debates produtivos realizados tanto no âmbito do Senado Federal quanto em diversos estados da Federação.

O teor do parecer dedica-se especialmente às iminentes transformações trazidas pela evolução tecnológica, que impõem a necessidade de uma legislação civil atualizada e sintonizada com os novos contornos da realidade.

Notavelmente, a ênfase recai sobre os direitos da personalidade, que enfrentam significativas reconfigurações sob o impacto da revolução digital [1].

Em complemento a essas iniciativas, o Legal Grounds Institute promoveu, em 6 de março de 2024, o Seminário Internacional sobre Neurodireitos, inserindo-se no movimento de fomento ao debate sobre a codificação dos neurodireitos no Brasil, uma continuação das discussões que têm sido realizadas a nível nacional.

O progresso no campo da neurociência resultou em um crescente interesse da comunidade acadêmica e do público sobre o potencial para o aprimoramento da saúde e da vida humana, suscitando, entretanto, questões sobre os riscos inerentes.

As neurotecnologias vêm experimentando uma significativa transição, migrando dos ambientes acadêmicos e laboratoriais para o setor industrial. Essa evolução se reflete no avanço de suas aplicações em contextos militares e médicos, bem como na sua entrada no mercado de consumo, por meio de dispositivos projetados para aprimorar o rendimento em atividades esportivas e de lazer.

Esse fenômeno, aponta para uma realidade em que as fronteiras entre o humano e o artificial se tornam cada vez mais tênues. Dentre várias questões emergentes, uma se destaca: qual será o alcance do controle por entidades públicas e privadas na criação da mente híbrida?

Áreas prioritárias
Os neurodireitos são entendidos como um quadro normativo voltado para a proteção e a preservação do cérebro e da mente humana [2]. Termo cunhado em 2017 [3] por Ienca e Andorno, que concluíram que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos era insuficiente para oferecer uma governança adequada aos riscos que emergem do desenvolvimento e do uso destas tecnologias, ele ganhou tração perante a comunidade cientifica internacional com a publicação de um artigo coordenado por Rafael Yuste e Sara Goering e publicado na revista Nature [4].

No artigo foram identificadas quatro áreas prioritárias de preocupação relacionadas às neurotecnologias e a inteligência artificial, combinação que potencializa os benefícios, mas também os riscos associados.

Para cada um desses eixos, foram recomendadas cláusulas protetivas específicas, denominadas neurodireitos, que deveriam ser incorporadas em legislações, regulamentos e tratados internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Com o desenvolvimento da teoria, hoje a Neurorights Foundation prevê um framework jurídico-regulatório composto de cinco Neurodireitos [5]:

O direito à privacidade mental, relacionado a ideia de que quaisquer dados neurais obtidos a partir da medição da atividade neural podem ter impactos profundos e que o tratamento desta nova categoria de dados pessoais deve ser objeto de regulação específica.
O direito à identidade pessoal, objetivando estabelecer limites que impeçam as neurotecnologias de influenciar ou alterar o senso de identidade individual (self), que pode ser resultado da conexão dos indivíduos a redes digitais que extrapola a dinâmica de relação homem-máquina ou cérebro-máquina que conhecemos hoje.
O direito ao livre arbítrio, aplicado especificamente ao contexto estudado, criado a partir do entendimento de que é imprescindível que os indivíduos mantenham o controle absoluto sobre seus próprios processos decisórios, livres de qualquer manipulação oculta oriunda de neurotecnologias externas [6].
O direito de acesso justo à ampliação mental, que se refere ao acesso ao aprimoramento ou extensão das capacidades cognitivas pelos meios tecnológicos, que deve ser guiado pelos princípios da justiça e da equidade.
O direito à proteção contra vieses, entendido como o conjunto de medidas para o combate aos vieses que podem resultar do emprego das neurotecnologias, principalmente nas situações em que seu uso é conjugado a ferramentas de inteligência artificial.
Novas iniciativas
Recentemente, governos, organizações internacionais e outros agentes têm se dedicado a desenvolver um arcabouço ético, jurídico e regulatório para as neurotecnologias, influenciados pela teoria dos neurodireitos. Destacamos o trabalho da Unesco, que publicou o Preliminary Study on the Technical And Legal Aspects Relating To The Desirability Of A Standard-Setting Instrument On The Ethics Of Neurotechnologies [7], destacando os desafios éticos, legais e sociais únicos impostos pelas neurotecnologias.

A Espanha, com sua Carta Derechos Digitales, e a França, através da Charte de développement responsable des neurotechnologies, são exemplos de países que reconhecem a importância da regulamentação das neurotecnologias para proteger a identidade e autonomia individual. O Chile se destaca com a aprovação da pioneira Ley 21.383, que altera a Constituição para incluir a proteção de neurodireitos, e com uma decisão judicial inédita contra a empresa Emotiv, em defesa da privacidade cerebral.

No Brasil, o interesse legislativo cresce com a apresentação de projetos de lei abordando a temática, evidenciando um movimento global em direção a um marco regulatório mais robusto e consciente para as neurotecnologias.

O Projeto de Lei 1.229/21 propunha atualizar a LGPD para incluir proteções específicas para dados neurais, definidos como aqueles coletados do sistema nervoso via interações cérebro-computador, adicionando-os como uma nova classe de dados pessoais sensíveis, além de esclarecer conceitos chaves como dados neurais e neurotecnologia.

A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou a Proposta de Emenda à Constituição que estabelece: “A política e a pesquisa científica e tecnológica basear-se-ão no respeito à vida, à saúde, à dignidade humana, à integridade mental do ser humano e aos valores culturais do povo, na proteção, controle e recuperação do meio ambiente, e no aproveitamento dos recursos naturais”. Essa emenda, registrada como Emenda Constitucional nº 85/2023, é um dos primeiros atos legislativos no Brasil e no mundo a abordar os neurodireitos, posicionando o estado como líder na proteção jurídica frente aos avanços tecnológicos

A Proposta de Emenda à Constituição nº 29/2023 visa incluir na Constituição Federal, entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica como requisitos para o desenvolvimento científico e tecnológico. Aponta, que os tratados jurídicos internacionais que versam sobre o tema não garantem tutela jurídica suficiente para proteger a integridade física e mental, abalizando como referência a NeuroRights Foundation.

Direitos de personalidade e a reforma do Código Civil
É reconhecido que a proteção dos cidadãos contra os riscos opostos pelo avanço das novas tecnologias e pela digitalização da vida também passa pelos direitos de personalidade. São direitos absolutos destinados a preservar e proteger a dignidade da pessoa humana e, portanto, são indisponíveis (isto é, não podem ser derrogados ou limitados) [8].

Danilo Doneda argumenta que, diante do desenvolvimento tecnológico e atual dinâmica social, surge a necessidade de proteção da pessoa humana com novos instrumentos e por todo o ordenamento [9], de modo que o texto constitucional condiciona o legislador a uma cláusula geral da personalidade [10], que deve ser refletida no restante do ordenamento.

Nesse contexto, defende-se a integração dos neurodireitos na iminente reforma do Código Civil, atualizando os direitos de personalidade. A codificação dos neurodireitos visa estabelecer fundamentos claros e robustos, reforçando a segurança jurídica e a previsibilidade, cruciais para o avanço ético das tecnologias. Essa estrutura pretende apoiar o crescimento tecnológico e econômico sem impor restrições desnecessárias.

Deixar que tais direitos sejam estabelecidos gradualmente pela jurisprudência, por outro lado, pode resultar em uma proteção fragmentada e desigual, incapaz de acompanhar o ritmo acelerado das mudanças tecnológicas e suas implicações profundas na condição humana. Portanto, é crucial que aproveitemos a reforma do Código Civil para estabelecer um marco regulatório robusto que garanta a dignidade e a integridade mental do indivíduo na era digital.

[1] CAMPOS, Ricardo., XAVIER, Carolina. Os direitos de personalidade na proposta de reforma do Código Civil. Legal Grounds Institute. Centro de Direito Civil e Tecnologia, Direito Civil e Tecnologia. 29 fevereiro, 2024. Disponível em: https://legalgroundsinstitute.com/blog/os-direitos-de-personalidade-na-proposta-de-reforma-do-codigo-civil/. Acesso em 03 mar. 2024.

[2] IENCA, Marcello. On Neurorights. Frontiers in Human Neuroscience, v.15, 2021. Disponível em: < https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2021.701258>. Acesso em 16 nov. 2023.

[3] IENCA, M., ANDORNO, R. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sci Soc Policy 13, 5 (2017). Disponível em: https://doi.org/10.1186/s40504-017-0050-1. Acesso em 20 nov. 2023.

[4] YUSTE, R., GOERING, S., ARCAS, B. et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and AI. Nature 551, 159–163 (2017). Disponível em: https://doi.org/10.1038/551159a. Acesso em 16 nov. 2023.

[5] THE NEURORIGHTS FOUNDATION. Frameworks to inform Neurotechonology policy: The Five Neurorights. Disponível em https://neurorightsfoundation.org/mission. Acesso em 18 nov. 2023

[6] Entendemos que a terminologia adotada pode ser problemática, na medida em que pesquisas no campo da neurociência apontam que o processo decisório e o comportamento são determinados pela atividade neural. Cf. LIBET, Benjamin W. (1999). Do we have free will? Journal of Consciousness Studies 6 (8-9):47-57; Peixoto, D., Verhein, J.R., Kiani, R. et al. Decoding and perturbing decision states in real time. Nature 591, 604–609 (2021).

[7] UNESCO. Preliminary study on the technical and legal aspects relating to the desirability of a standard-setting instrument on the ethics of neurotechnology. 2023. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000385016. Acesso em 21 nov. 23

[8] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 11ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 130.

[9] DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no Código Civil. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, Nº 6, jun./2005. Disponível em: < https://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/os_direitos_de_personalidade_no_codigo_civil.pdf > Acesso em: 20 nov. 2023

[10] TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no Ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 50.

Sobre o autor
Legal Grounds Institute

Legal Grounds Institute

Produzindo estudos sobre políticas públicas para a comunicação social, novas mídias, tecnologias digitais da informação e proteção de dados pessoais, buscando ajudar na construção de uma esfera pública orientada pelos valores da democracia, da liberdade individual, dos direitos humanos e da autodeterminação informacional, em ambiente de mercado pautado pela liberdade de iniciativa e pela inovação.
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