O impacto do Digital Markets Act na regulação dos mercados digitais

Por Bernardo Fico

Originalmente publicado no site Maranhão & Menezes

O Dia de Conformidade com o Digital Markets Act (DMA) é um marco temporal relevante na etapa de implementação da regulação da União Europeia sobre os “mercados digitais”. O DMA tem como principal foco os chamados “gatekeepers”, definidos como provedores dominantes de serviços digitais que desempenham papel crucial na conexão entre empresas e consumidores. Assim, a União Europeia estabeleceu agenda que orienta os gatekeepers. Este procedimento iniciou-se com a identificação dos serviços essenciais de plataforma por meio da avaliação de aspectos como o controle de acesso a mercados, impacto e posição dominante que os torne “intermediários essenciais”. Em 6 de setembro de 2023, a Comissão Europeia classificou seis empresas — Alphabet, Amazon, Apple, ByteDance, Meta e Microsoft — como gatekeepers, abrangendo 22 “core platform services”.[1] Com seis meses concedidos para a conformidade às normativas do DMA, essa fase foi caracterizada por alterações as operações dessas empresas na União Europeia.

Confirmados os serviços e empresas que seriam classificados como gatekeepers, o Dia de Conformidade é, então, a data limite para que estes agentes demonstrem a forma pela qual cumprirão com as regras do DMA. Dado que é  dinâmico, o processo de monitoramento da Comissão a respeito das atividades dos gatekeepers deve ser parte significativa das mudanças trazidas pelo DMA. Nos meses que antecederam a conformidade, as empresas designadas como gatekeepers realizaram ajustes – em alguns casos substanciais – em suas práticas comerciais, incluindo aspectos como a portabilidade de dados e a proibição de práticas de auto-preferência.

Entretanto, a implementação do DMA gerou também debates e críticas, incluindo questionamentos ao rigor das regras que limitam o desenvolvimento e a integração de serviços novos e existentes por empresas de tecnologia. Algumas das empresas designadas como gatekeepers expressaram preocupações relacionadas à privacidade e segurança dos usuários, argumentando que obrigações como a permissão para sideloading, obrigações de interoperabilidade, compartilhamento de dados e outros requisitos poderiam colocar os usuários em risco cibernéticos, de privacidade, entre outros.

Considerado o conceito de gatekeepers e core platform services, é possível que a lista de serviços e empresas venha a mudar periodicamente, dependendo das mudanças no mercado e do entendimento que a Comissão dará para esses conceitos centrais da norma. As definições de “gatekeepers” e “core platform services” foram, inclusive, criticadas dado que são de textura bastante aberta, podem causar incertezas regulatórias. A amplitude das obrigações e os objetivos amplos do DMA também atraíram críticas por potenciais consequências indesejadas, podendo prejudicar os mercados que tenta regular e desfavorecer os consumidores.

Parcialmente em razão destas críticas, o fenômeno conhecido como “efeito Bruxelas” – consequência que se antecipava ver em relação ao DMA – pode ter sido fragmentado. Por um lado, tem-se visto aumentar a discussão sobre a regulação de mercados digitais ao redor do mundo– inclusive no Brasil – mas não sem críticas ao modelo adotado na Europa. Por outro, a uniformização de práticas empresariais não tem se mostrado a regra na atuação daquelas empresas designadas gatekeepers pelo DMA em mercados fora do bloco europeu. Historicamente, quando regulamentações são implementadas num país ou região específica, empresas globais tendem a adaptar-se às exigências mais rigorosas. Isso foi observado com a implementação da Regulação Geral de Proteção de Dados (GDPR), que levou empresas a adotá-la como referencial global. Contudo, em resposta ao DMA, os gatekeepers, em muitos casos, optaram por fragmentar seus serviços, adotando práticas distintas dentro e fora da Europa.

À medida que se aproximava o Dia de Conformidade do DMA, o julgamento do caso Spotify vs. Apple gerou, ainda, novos questionamentos sobre a confiança da Comissão nas suas próprias regulamentações. A decisão, tomada em 4 de março, abordou questões que, teoricamente, poderiam ser resolvidas pelo DMA. A centralização de downloads e pagamentos na App Store, por exemplo, já havia sido revisada pela Apple em observância às novas obrigações do DMA. Assim, a decisão tem sido criticada por redundar com os objetivos da própria regulação que a Comissão aprovou. Apesar disso, a Comissão Europeia impôs multa de 1.8 bilhões de euros à empresa, visando desencorajar futuras violações. Contudo, a iminente entrada em vigor das obrigações do DMA para gatekeepers e o compromisso já assumido pela empresa de alterar as regras pelas quais foi sancionada tem sido apontados como fatores relevantes nas críticas à decisão.

Nesta mesma esteira, comentários à decisão tem indicado que a decisão evidenciaria a conexão entre as regras estabelecidas pelo DMA e as questões antitruste, fato que se destaca ao se observar as responsabilidades impostas aos gatekeepers e as decisões em casos antitruste na Europa. Tal constatação sugere, contudo, a alta complexidade das práticas que o DMA visa regular, as quais não tão facilmente se enquadrariam na lógica das proibições ex ante, especialmente quando estas são vagas. Especificamente, proibições preventivas genéricas intensificam essa questão, uma vez que a aplicação concreta da norma exigirá análise detalhada que leve em conta as eficiências de mercado entre outros fatores, assemelhando-se significativamente à análise antitruste; é essa. Inclusive, uma das críticas que tem sido feita ao Projeto de Lei 2768 no Brasil.

A entrada em vigor do DMA marca um ponto de inflexão relevante, merecendo atenção para como as alterações introduzidas pela regulamentação afetarão diversos aspectos, como as dinâmicas do mercado, a experiência dos usuários e as estratégias dos gatekeepers em limitar suas adaptações ao DMA ao contexto europeu. Este último aspecto, em particular, deverá fomentar um cenário comparativo entre mercados operando sob a égide do DMA e aqueles alheios a ela, proporcionando, assim, perspectiva mais nítida do impacto da norma nas mencionadas dinâmicas a longo prazo.

[1] https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_23_4328

Sobre o autor
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Bernardo Fico

Gestor Institucional do Legal Grounds Institute. Mestre em Direito Internacional pela Northwestern Pritzker School of Law, Pós-Graduado em Direito Digital pela UERJ e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Possui cursos de concentração em Direitos Humanos (Stanford 2016), Direito Internacional (OEA-RJ, 2017), Human Rights Advocacy (Lucerne 2017), e Media Law (Oxford, 2018) além de Diploma Superior en Diversidad Sexual y Derechos Humanos (CLACSO, 2018).
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Gestor Institucional do Legal Grounds Institute. Mestre em Direito Internacional pela Northwestern Pritzker School of Law, Pós-Graduado em Direito Digital pela UERJ e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Possui cursos de concentração em Direitos Humanos (Stanford 2016), Direito Internacional (OEA-RJ, 2017), Human Rights Advocacy (Lucerne 2017), e Media Law (Oxford, 2018) além de Diploma Superior en Diversidad Sexual y Derechos Humanos (CLACSO, 2018).

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