PL 2.768/22 expõe o paradoxo da regulação de mercados digitais

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Por Juliano Maranhão

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico

Ferramentas e serviços digitais fazem parte do cotidiano no Brasil. Empresas que os proveem têm sido sujeitas a escrutínio por seu tamanho e preocupações quanto a seu impacto na concorrência e sociedade, provocando inclusive iniciativas de regulação no Brasil e ao redor do mundo.

Mas como a regulação não pode nomear as líderes na prestação desses serviços digitais, sob pena de violar a impessoalidade da lei, observa-se esforço de legislação por meio da abstração das características daquelas grandes empresas ou de traços dos seus serviços, não raro levando a situações paradoxais.

Exemplo típico é o PL 2768/22, que se propõe a regular os “mercados digitais”, mas sem antes ter apresentado avaliação de impacto econômico. Sua fonte inspiradora é o Digital Markets Act (DMA) da União Europeia, que foi aprovado, segundo críticas locais, em velocidade inusitada[1] e de modo prematuro, considerando a novidade de conceitos e temas objeto de regulação.[2]

A iniciativa europeia
O movimento legislativo europeu baseou-se em investigações da Comissão Europeia, que considerou serem anticompetitivas determinadas práticas de algumas grandes plataformas digitais como discriminação na exposição de resultados de buscas ou na forma de acesso, venda casada e recusa de venda.

Para críticos, as intervenções pelas autoridades europeias foram tardias e com remédios ineficazes. Alguns também alegaram haver dificuldades na análise da estrutura de mercado e avaliação de dano à concorrência em relação a serviços digitais.

Não menos complexo foi entender se tais condutas trariam eficiências, ou seja, produtos mais eficientes ou benefícios capazes de compensar eventuais danos concorrenciais apontados.

Tais dificuldades levaram os europeus de uma análise contextual (case by case) da razoabilidade (rule of reason) de condutas já realizadas (ex-post) em processos repressivos para uma iniciativa de regulação prévia (ex-ante) por meio do DMA, com obrigações e proibições gerais de condutas (per se), desconsiderando a avaliação de sua razoabilidade ou a potencial geração de eficiências econômicas compensatórias, que possam melhorar o produto ou serviço e beneficiar usuários e consumidores finais.

Lei europeia e a análise concorrencial
Os documentos europeus que analisam o impacto da regulação [3] apontam a existência de um  “problema concorrencial, que decorreria do tipo de serviço prestado ou do tamanho dos líderes. A regulação, argumentam, aumentaria a contestabilidade — isto é, permitiria que concorrentes contestem o poder de determinadas plataformas — e também traria mais justiça (fairness) nas relações negociais com elas travadas.

Desse modo, apesar de partir de investigações de condutas pelas autoridades antitruste europeias, a legislação europeia baseia-se em conceitos estranhos à análise concorrencial. Impõem-se obrigações per se e ex-ante para os agentes que chamam de gatekeepers (empresas selecionadas com base em tamanho) que prestem core plataform services (serviços digitais), com o objetivo de alcançar contestabilidade (contestability) e equidade (fairness), termos não bem definidos.

O próprio termo “mercados digitais” não é claro, pois abrange diferentes empresas que fornecem serviços distintos e que não compõem um “mercado” no sentido técnico antitruste. Ocorre que, apesar disso, aquela lei atribui o poder de fiscalização e sancionamento (enforcement) à própria autoridade concorrencial europeia.

O projeto brasileiro
Já o Projeto de Lei 2.768/22 brasileiro traz nítida linguagem concorrencial. A noção de “gatekeeper” é traduzida como “poder de controle de acesso essencial, que remete aos conceitos de “poder de mercado e de “infraestrutura essencial, típicos da metodologia antitruste. Dentre os princípios orientadores no artigo 4º, estão a livre concorrência, livre iniciativa e repressão ao abuso de poder econômico.

O ponto central, porém, está no artigo 10, que traz obrigações vagas de condutas no mercado, como isonomia e acesso às plataformas. Aparentemente, são regras per se, mas o artigo 11 obscurece essa leitura, ao trazer ponderações e ressalvas àquelas obrigações, tais como a intervenção proporcional aos riscos, a avaliação de impactos, custos e benefícios das condutas (seria a análise de eficiência?), e o nível de competição (seria a análise de rivalidade?).

Comparando os documentos
Embora ambos os documentos, brasileiro e europeu, regulem por meio da imposição de obrigações, a motivação da intervenção é distinta. Apesar de fazer referência a condutas investigadas e condenadas, o diagnóstico europeu insiste na existência de um problema estrutural, para justificar uma ferramenta nova de intervenção.

Ou seja, para os europeus, características dos serviços digitais, aliadas ao tamanho de algumas plataformas, seriam já uma ameaça à concorrência, daí proibições ex ante a determinadas condutas, independentemente da análise do contexto de sua realização. Já do lado brasileiro, não há diagnóstico publicizado, mas a linguagem da lei não indica um problema estrutural, parecendo assumir que a questão seria simplesmente combater condutas praticadas por plataformas que venham a ocupar posições dominantes.

Do paradoxo ao dilema
Assim, o PL brasileiro traz uma abordagem mais afeita à análise concorrencial, e, como visto, com algumas notas de análise contextual (artigo11), mas, paradoxalmente, atribui poderes regulatórios e de enforcement à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Teríamos então, na Europa, um novo instrumento regulatório, aplicado pela autoridade concorrencial e, no Brasil, um regime especial concorrencial para as “plataformas digitais”, exercida pela Anatel e não pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Deste paradoxo, decorre um dilema. Ou as obrigações no PL são per se e não cabe a análise de razoabilidade, rivalidade e eficiência, ou o PL traz apenas um regime especial de análise antitruste para os serviços digitais. Em ambos os casos, há problemas.

Primeiro, se tratamos de um regime especial para enfrentar condutas anticompetitivas, então o PL proposto traria uma sobreposição em relação à legislação concorrencial (Lei n. 12.529/11), antevendo-se insegurança jurídica e conflitos institucionais. Haveria também um problema de legitimidade, considerando que, ao contrário do que ocorreu na Europa, o Cade não condenou as chamadas “Big Techs”, não obstante tenha julgado as mesmas condutas lá examinadas.

Não parece razoável que o PL proponha a revisão legal de decisões tomadas pelo Cade. Se realmente fosse essa a intenção, bastaria propor ajustes procedimentais à legislação concorrencial (e.g., para tornar mais célere a análise de serviços digitais), ou ainda revisar elementos da metodologia, sem alteração legal.

Agora, se o PL traz efetivamente obrigações per se, é importante haver detalhada avaliação de impacto, apontando qual seria o problema concorrencial apto a justificar regulação específica, diversa da base normativa que legitima o poder repressivo do Cade, e demonstrando a adequação e os benefícios dos remédios propostos.

Risco de rejeição do transplante
De todo modo, é necessário repensar o escopo do projeto, em particular no que tange às obrigações impostas, que, por serem demasiado genéricas, incluiriam restrições a condutas já aceitas pela jurisprudência do Cade.

Por exemplo, a recusa de acesso de de uma loja ao centro comercial por um shopping center, por razoes legítimas de negócio (por exemplo, histórico de fraude ou incompatibilidade com o perfil escolhido pelo shopping), já admitida pelo Cade, não poderia ser realizada por um marketplace em relação a um vendedor nos meios digitais. A proibição per se baseada na legislação europeia também acabaria por  desconsiderar que serviços digitais podem concorrer acirradamente com serviços físicos e que as características de cada mercado no Brasil e na Europa são distintas.

O risco aqui é de rejeição de um transplante mal-sucedido. Há preocupações com serviços digitais a serem debatidas e tratadas, mas o caminho da regulação “one-size-fits-all” por meio de abstrações de características de determinadas empresas ou de seus serviços não parece ser o mais adequado.

A importação de modelos estrangeiros tampouco é recomendável,  quando o mercado brasileiro tem características específicas e a jurisprudência do CADE entendimentos próprios. Antes de embarcar numa agenda geopolítica europeia, é fundamental diagnosticar claramente o problema, para que eventual intervenção Estatal encontre os remédios adequados, sem ameaçar o desenvolvimento e a competitividade nacional no ambiente digital.


[1] Belloso, N.M. e Petit, N. The EU Digital Markets Act: a competition Hand in a Regulatory Glove, European Law Review, August, 2023.

[2] Colomo, P.I. The Draft Digital Markets Act: A Legal and Institutional Analysis” (2021) 12 Journal of European Competition Law & Practice 561, 572 .

[3] European Commission, “Inception Impact Assessment: Digital Services Act package: Ex ante regulatory instrument for large online platforms with significant network effects acting as gate-keepers in the European Union’s internal market” (2 June 2020) Ares(2020)2877647.

Sobre o autor
Juliano Maranhão

Juliano Maranhão

Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt. Pós-doutorado na Faculdade de Ciência da Computação da Universidade de Utrecht. Membro do Comitê Executivo da International Association for Artificial Intelligence and Law (IAAIL). Pesquisador Associado do Center for Artificial Intelligence USP-IBM (C4AI/USP) e do Centro de Pesquisa Inteligência Artificial Recriando Ambientes – IARA. Diretor do Legal Grounds Institute e da Lawgorithm (USP).
Juliano Maranhão

Juliano Maranhão

Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt. Pós-doutorado na Faculdade de Ciência da Computação da Universidade de Utrecht. Membro do Comitê Executivo da International Association for Artificial Intelligence and Law (IAAIL). Pesquisador Associado do Center for Artificial Intelligence USP-IBM (C4AI/USP) e do Centro de Pesquisa Inteligência Artificial Recriando Ambientes – IARA. Diretor do Legal Grounds Institute e da Lawgorithm (USP).

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