SUSTENTABILIDADE DIGITAL E INFRAESTRUTURA: UMA PERSPECTIVA COMPARADA

A transformação digital vivenciada nas últimas décadas pode ser considerada uma verdadeira revolução, com significativas implicações sociais, econômicas e políticas para todo o mundo. Na base da economia que sustenta essa nova realidade, encontra-se uma infraestrutura física que, cada vez mais, depende de esforços e investimentos para acomodar a nova geração de tecnologias – inteligência artificial, computação em nuvem, redes 5G e 6G, entre outras – e o crescente tráfego de dados, que deve ocorrer de forma resiliente, segura, sustentável e inclusiva. Neste contexto, diversas propostas têm buscado garantir que este processo ocorra adequadamente rumo a um ecossistema digital sustentável a longo prazo.

Diante da urgência do tema, inclusive e especialmente para o Brasil, o Legal Grounds Institute estreia este novo projeto, intitulado Núcleo da Sustentabilidade Digital e Infraestrutura, com o objetivo de instigar o debate público sobre as principais pautas relacionadas e dedicadas à garantia da sustentabilidade desta que é considerada a espinha dorsal da internet. Nesta página, serão reunidos materiais nacionais e internacionais sobre o tema, para que sirvam de insumos para futuros projetos, reflexões e iniciativas.

 

FAIR SHAIR NO SETOR DE TELECOMUNICAÇÕES

O primeiro tópico a ser debatido neste espaço é o fair share no setor das telecomunicações, que vem sendo discutido ao redor do mundo, em diversos países. O termo – que em tradução literal significa “justa contribuição” – refere-se às propostas que buscam atribuir às grandes empresas de tecnologia, que hoje geram a maior parte do tráfego de dados global, responsabilidades condizentes com os benefícios que obtêm com o uso da infraestrutura física mantida pelas operadoras de telecomunicação. Em resumo, trata-se de repensar o atual modelo de financiamento desta infraestrutura, para que ele seja mais justo e proporcional e sustentável. Abaixo, trazemos alguns questionamentos e reflexões sobre o atual modelo de funcionamento da Internet. Confira:

O atual desequilíbrio do ecossistema digital

O ponto de partida para se compreender a necessidade de uma contribuição pelo uso excessivo da infraestrutura da Internet é o quadro de profundo desequilíbrio que marca o ecossistema digital hoje. De um lado, está o crescente aumento de tráfego de dados global, potencializado pelo rápido desenvolvimento de tecnologias que demandam cada vez mais das redes, como o caso do streaming, da computação em nuvem (cloud computing) e da inteligência artificial. Como demonstram alguns relatórios, mais de 50% desse tráfego é gerado por apenas seis gigantes da tecnologia: Meta, Alphabet, Apple, Amazon, Netflix e Microsoft. No caso do Brasil, quase 70%. De outro lado, os maciços investimentos necessários na atualização e expansão das redes recai quase exclusivamente pelas operadoras de telecomunicação e pelos usuários finais. Ou seja, apesar de se beneficiarem e utilizarem da infraestrutura para oferecer seus serviços com alta qualidade e velocidade, as grandes plataformas digitais não contribuem efetivamente para sua melhoria, em um cenário de claro desequilíbrio que pode colocar em xeque a própria sustentabilidade desse ecossistema.

Um possível modelo para o futuro

É importante explicar que as propostas de fair share não têm como objetivo cobrar uma contribuição de todos os serviços que geram tráfego de dados na internet, mas sim daqueles atores que efetivamente são responsáveis por sobrecarregar as redes. Ou seja, espera-se uma contribuição das gigantes empresas de tecnologia, que hoje despontam na maximização do lucro, concentram poder de mercado e acabaram por se tornar as verdadeiras controladoras do acesso à internet – com efeitos prejudiciais à inovação e à concorrência nos mercados digitais. Como certos estudos têm apontado, a definição do que constituiria um grande usuário para este fim poderia adotar, por exemplo, o limite de 5% do tráfego para redes móvel e fixa: no Brasil, o valor equivaleria a 12,5 milhões no primeiro caso e 2,5 milhões, no segundo. É preciso ter em mente, portanto, que todos os outros provedores de serviços online estariam isentos do dever de contribuir.

Liberdade para quem?

Um dos principais argumentos utilizados por aqueles que se opõem às propostas de fair share é que haveria uma violação do princípio da neutralidade de rede, colocando em perigo a internet “livre e democrática”, com prejuízos aos usuários finais. O ponto é que, neste contexto, o conceito de liberdade é distorcido em favor da proteção do status quo que garante amplas vantagens às big techs. Na verdade, o princípio (corretamente garantido no Brasil pelo Marco Civil da Internet) busca apenas impedir que os provedores de acesso à internet possam degradar ou bloquear indevidamente conteúdo e aplicações, como forma de proteger o usuário final e garantir a sua liberdade e autonomia online. Isso em nada se relaciona com uma proibição ex ante de quaisquer cobranças pelo uso da infraestrutura física atualmente mantida pelas operadoras de telecomunicação.

Movimento global

O fair share já pode ser considerado um movimento global. A Comissão Europeia já lançou uma consulta pública sobre o tema, com o objetivo de ampliar a discussão que lá se insere no contexto de necessidade de se viabilizar as metas do Path to the Digital Decade e de tornar a Europa um líder tecnológico até 2030. Hoje, o tema está inserido no recente white paper “Como suprir as necessidades da Europa em matéria de infraestruturas digitais?”. Nos Estados Unidos, as propostas têm sido vislumbradas no âmbito da revisão do Fundo de Serviço Universal (USF), cuja legislação atual prevê uma taxa de universalização cobrada apenas das empresas de telecomunicações. Por fim, a Coreia do Sul já conta com avanços tanto na via judicial (com o famoso caso SK Broadband v. Netflix) quanto na via legislativa (com a Lei de Estabilização de Serviços de 2022).

O papel do fair share para a transformação digital brasileira

O debate sobre a sustentabilidade das redes é urgente. A transformação digital exige uma infraestrutura adequada não apenas para o devido funcionamento de diversos modelos de negócios e serviços públicos, mas para o exercício de direitos fundamentais dos cidadãos. No Brasil, a garantia do justo compartilhamento de custos revela-se uma saída para auxiliar iniciativas de inclusão digital de grande parte da população, que conta com pouca ou nenhuma possibilidade de acesso à conectividade.

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